A divulgação de vídeo de uma audiência de oitiva da vítima em processo de acusação de estupro em Santa Catarina abalou quem o assistiu e o mesmo viralizou, em razão da manchete veiculada pelo jornal que o publicou, ao qual alcunhou para destacar a sentença absolutória, a expressão "estupro culposo".
O caso teve enorme repercussão e manifestações de toda sorte, além de especialistas a explicar o óbvio: não existe (e nem foi citado na sentença) a modalidade culposa ao crime de estupro. Aliás, dispensa-se inclusive pensar em dolo no caso deste crime. O estupro é, ou não é.
A alcunha foi dedicada à conclusão da construção argumentativa expressa na manifestação do Ministério Público que clamou pela absolvição do réu, e a acolhida da mesma em sentença pelo juiz, ao defender que não houve dolo no estupro, como se tal ato tivesse alguma diferença para se alcançar o resultado.
Primeiramente localizemos o leitor mais desavisado a esta altura, afinal, o caso é conhecido: processo de acusação de estupro contra vulnerável, cuja vítima é uma influenciadora digital. Os autos, porém, estão protegidos por sigilo judicial, nos termos do artigo 234-B do Código de Processo Penal, o que impede a qualquer um que não atue no mesmo, de mergulhar levianamente em ilações acerca da sentença ou da condução do processo em si.
Ora, se não tivemos acesso aos autos, então qual o objeto deste artigo? A reflexão necessária que se faz em decorrência da condução da audiência e da exposição da oitiva da vítima por parte do advogado do acusado, além de seus desdobramentos.
Audiência no âmbito processual é ato judicial solene presidido pelo juiz. Nela, as partes devem guardar comportamento compatível com o decoro, urbanidade e, no mínimo, civilidade.
O advogado é dotado de imunidade profissional, conforme §2º do artigo 7º do Estatuto da Advocacia e artigo 142, I do Código Penal. Logo, não se constituem injúria ou difamação, as manifestações de sua parte proferidas no exercício da atividade em juízo ou fora dele. Todavia, esse direito não é absoluto. O mesmo dispositivo segue ao dispor: "...sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer."
O próprio Estatuto dispõe no artigo 31 que o advogado no exercício do seu ofício deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia. É dele também o dever de urbanidade e de preservar em sua conduta, a honra, a nobreza e a dignidade da profissão, zelando pelo seu caráter de essencialidade e indispensabilidade, nos termos do artigo 1º do Código de Ética da Advocacia.
A conduta do causídico é de causar espécie e fere de maneira inequívoca os preceitos basilares da urbanidade, civilidade e o mais caro preceito constitucional: o respeito à dignidade da pessoa humana. Uma coisa é no transcurso de sua atuação profissional tentar desestabilizar a vítima para que esta possa desvelar uma contradição ou uma inconsistência, porém, caminho diametralmente oposto é humilhar, ridicularizar e fazer jogos psicológicos para desacreditar a honra da vítima no processo. Refletimos.
Em que pese a completa, total e absoluta omissão do juiz em coibir os notórios excessos do advogado, o que ensejou protestos de várias entidades e representações no Conselho Nacional de Justiça, há limites de atuação do advogado dentro da ética e dos preceitos constitucionais brasileiros que claramente não foram observados ou respeitados.
A Constituição Federal dispõe em seu artigo 1° que um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito é a dignidade da pessoa humana. Portanto, ninguém pode ter sua integridade, seja física, emocional ou psicológica ameaçada no transcurso de um processo. Com a conduta profissional fora dos limites éticos recomendados, o que se viu foi uma oitiva estarrecedora, na qual a vítima mais parecia acossada, diminuída, como se não tivesse direito de acusar uma pessoa de estupro e, ao fazê-lo, deveria ser desacreditada pelos clichês machistas que ainda preponderam na sociedade brasileira: "você acha decente essas fotos nas suas redes sociais", "sua roupa é curta, você incentiva a conduta masculina", são apenas algumas das ilações disparadas contra a vítima.
É preciso alertar que nos processos de crimes contra a dignidade sexual, o depoimento da vítima tem especial relevância para o julgamento, de modo que causa ainda mais espécie esse tipo de violação no contexto dos autos do processo. Como então, garantir a lisura deste depoimento em um contexto de violência verbal e psicológica? Se a absolvição se deu, como exemplo hipotético, pela falta de verossimilhança do depoimento da vítima com as provas colhidas nos autos, certamente temos uma causa de nulidade. Além disso, por conta do pedido de absolvição pelo Ministério Público, a vítima está relegada a sua própria sorte, portanto, se quiser recorrer será por seus próprios esforços materiais e jurídicos.
Como se já não fosse grave ter seu corpo violado, as sequelas psicológicas, físicas e emocionais, agora, também, a vítima se vê obrigada a ter de lidar com o constrangimento de atitudes, no mínimo, impertinentes do advogado do acusado. É o exemplo que as mulheres percebem e se recolhem, a fim de não notificar as autoridades e sofrerem caladas, para não terem de ser expostas e ridicularizadas em uma sociedade ainda machista.
No Brasil 180 mulheres são estupradas por dia, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. E mais: Em São Paulo, 8 mulheres por hora são estupradas, agredidas ou mortas. Isso porque temos, segundo estatística, apenas 10% de notificação real dos casos, ou seja, o problema é muito mais sério e profundo.
Por conta da repercussão do caso, um grupo de deputadas propuseram na Câmara a criação da Lei Mariana Ferrer a fim de buscar punição ao que denominaram de "violência institucional", com a detenção por até um ano do agente público que não zelar pela integridade física e psicológica da vítima. Assinado por 26 deputados, nos casos sobre crimes contra a dignidade sexual caberá ao juiz garantir a integridade da vítima, sob pena de ser responsabilizado. A justificativa do projeto é justamente coibir o desestímulo das denúncias para as vítimas que tem medo de não serem protegidas e devidamente amparadas pela justiça. Uma resposta claramente midiática aos acontecimento do julgamento supra mencionado.
O Projeto de Lei é mais um capítulo no extenso arcabouço normativo protetivo dos direitos das mulheres como as Leis: Maria da Penha, Carolina Dieckmann e Rose Leonel, além de reformas para maior endurecimento penal para os crimes de importunação sexual, a equiparação do atentado violento ao pudor ao estupro, dentre outros. Isso significa que nossa legislação é falha? Negativo, o conjunto normativo de proteção à mulher é vasto e suficiente, o que falta é a apuração correta dos atos e a devida responsabilização dos culpados. Episódios como o da influenciadora são apenas mais um, dentre tantos que ocorrem cotidianamente na sociedade brasileira e, agora, por conta da repercussão, se criará mais uma lei dentre tantas já existentes.
O que se precisa, efetivamente, é respeitar as vítimas de violência e estupro, além de assegurar o acolhimento, a proteção psicológica, física e emocional das vítimas no âmbito policial e judicial para incentivar as denúncias. Indistinto se as vítimas sejam mulheres, homens ou trans, o que importa é aplicar os rigores da lei para aqueles que não respeitam ou fazem cumprir os preceitos constitucionais, ou ainda se valem de atitudes machistas para diminuir o impacto do delito, imiscuir responsabilidades ou inverter o polo da culpa e transferir a conduta para um "incentivo" da vítima, o que em realidade nunca ocorreu.
As pessoas têm o direito de se vestirem, falarem e circularem aonde bem entenderem, não há justificativa para qualquer conduta inadequada por parte de um agressor, estuprador ou feminicida. Estupro é estupro, não há incentivo, concordância ou permissibilidade. A justiça deve coibir e encarcerar todos aqueles que violarem sexualmente um ser humano, independente do sexo, idade ou roupa que usar. A sociedade brasileira agradece e conclama por respeito!
*Antonio Baptista Gonçalves é advogado, pós-doutor, doutor e mestre pela PUC/SP e presidente da Comissão de Criminologia e Vitimologia da OAB/SP - subseção de Butantã
*Bruna Melão Delmondes é advogada, especialista em direito civil e processual civil pela Universidade Estadual de Londrina
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