
O século XXI tem sido parcimonioso, no Ocidente, na produção de estadistas. Nestes vinte e um anos desde o seu início, a humanidade tem passado por uma montanha russa de situações políticas e econômicas. Do bug do milênio, em que se previa uma hecatombe digital, às crises financeiras de 2007 e 2008, à pandemia da Covid-19 e à Guerra da Ucrânia, este tem sido, um século de grandes contrastes e emoções. Crises, no geral, oferecem oportunidades para o surgimento de grandes lideranças, que confortem as populações e lhes deem uma perspectiva de dias melhores. Infelizmente, este não tem sido o caso, razão por que o desalento global e a falta de perspectivas positivas quanto ao futuro têm crescido. A inexistência de lideranças capazes de rejuvenescer suas populações é problemática porque degenera o futuro e cria uma nostalgia instransponível.
É por isso que o assassinato de Shinzo Abe, ex-Primeiro-Ministro do Japão, causou enorme abatimento global. O Japão, que passou por seu auge econômico na década de 1970, quando o país parecia numa rota inevitável de ascensão global, caiu num período de recessão econômica que perdurou por anos. Este estado de letargia levou o país a décadas perdidas economicamente e o Japão parecia patinar, muito contrariamente à rota que trilhara anteriormente. O estouro da bolha econômica, ao final dos anos 1980, fez o país enfrentar três grandes desafios: deflação, dívida e demografia, com uma população cada vez mais envelhecida.
A primeira passagem, como Primeiro-Ministro, ocorreu entre 2006 e 2007, teve resultados pífios. No entanto, em seu segundo período como Primeiro-Ministro, entre 2012 a 2020, Abe implementou uma estratégia econômica - Abenomics - que consistia em maior flexibilização monetária e fiscal, aceleração do crescimento, desregulamentação e reforma do Estado japonês.
Embora parte da estratégia tenha falhado, Abe logrou vencer a apatia do país, ao criar uma nova rota de crescimento e desenvolvimento, reduzindo o quadro de estagnação prevalecente no Japão. Abenomics incrementou a oferta de dinheiro no país, impulsionou os gastos públicos e tomou as medidas necessárias para aumentar a competitividade, além do renovar o ânimo numa economia que sofrera décadas perdidas. O Japão tornou seus produtos mais atraentes internacionalmente, com estímulo ao consumo e demanda no curto prazo, gerando crescimento e superávit.Além disso, Abe buscou na construção da Parceria Trans Pacífica (TPP) um importante legado para criar um eixo de desenvolvimento e revitalização econômica global, diante da competitividade imposta pelo livre comércio.
Na Política Externa, Abe-san compreendia a importância da manutenção de um relacionamento estável com os Estados Unidos, particularmente durante o período turbulento de Donald Trump na presidência. Abe buscou fortalecer a defesa do país, com ênfase, principalmente, na possibilidade de poder agir com autonomia, inclusive buscando as reformas constitucionais necessárias para ampliar o seu poderio militar.
Navegar no mar turbulento das relações internacionais, num período de ascensão da China e declínio dos Estados Unidos foi, por certo, um dos maiores desafios que Abe - um grande multilateralista - enfrentou, particularmente para manter a necessária equidistância que garantisse ao seu país a capacidade de sobreviver entre os dois gigantes globais. Abe também foi ativo em buscar um diálogo mais próximo à China e dar à diplomacia japonesa o instrumental necessário para que o país se tornasse mais aberto e influente no mundo.
Foi, no entanto, a pandemia da Covid-19 que lhe criou maiores problemas políticos.Abe - pode-se afirmar - foi a primeira grande vítima política da pandemia. O Japão, inicialmente, foi lento em adotar algumas das medidas essenciais para o combate à pandemia e, diferentemente de outros países asiáticos, sofreu mais com o descontrole da pandemia, apesar do histórico positivo de resultados em pandemias anteriores.
Mas, sem dúvida, um dos legados mais importantes e positivos de Abe foi a forma em que ele saiu do poder. Em 28 de agosto de 2020, anunciou a renúncia ao cargo, sob a alegação de uma enfermidade sem cura, cuja necessidade de tratamento intensificaria. O anúncio da renúncia apresentou dois aspectos importantes, que deveriam ser imitados globalmente: um pedido sincero de desculpas ao eleitorado por não completar a totalidade do seu mandato e a afirmação de que a doença e o seu respectivo tratamento não lhe permitiriam ter a plena capacidade para dedicar-se às grandes questões políticas e econômicas do Japão.
Abe, nas relações Brasil-Japão, intensificou o diálogo, criando programas e mecanismos de maior interação entre os países. O Brasil, com sua enorme população nikkei, é uma peça importante nas interações globais do Japão. Também ficou marcada na memória dos brasileiros a Cerimônia de Encerramento dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, quando Abe - para convidar os brasileiros aos Jogos Olímpicos de Tóquio - apareceu no estádio do Maracanã incorporando Super Mário, o personagem dos jogos da Nintendo, num momento de grande humor daquela linda cerimônia.
Shinzo Abe, um grande estadista deste primeiro quartil do século XXI, é uma estrela que se apaga no mundo político por um assassinato covarde. Mas seu legado e exemplo perdurarão por gerações.
*Marcus Vinícius De Freitas, professor visitante, China Foreign Affairs University. Senior Fellow, Policy Center for the New South