Desde sua volta à Casa Branca, Donald Trump tem promovido uma ofensiva contra a estrutura de integridade e controle nos Estados Unidos. Seu governo não apenas enfraqueceu a aplicação da Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), mas também debilitou a desmantelou órgãos essenciais à proteção de consumidores e denunciantes. Sim, Trump foi eleito democraticamente, mas numa democracia não há poderes ilimitados e todas as autoridades públicas estão sujeitas a mecanismos de accountability e ao controle judicial de suas políticas. Como filosoficamente dizia o personagem Ben Parker, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.
Um dos primeiros atos que chama a atenção foi o fechamento do Consumer Financial Protection Bureau (CFPB), considerado uma espécie de “PROCON federal” americano voltada para a defesa de clientes de instituições financeiras. Essa agência protegia consumidores contra abusos do setor financeiro, fiscalizando fraudes bancárias, práticas predatórias e outras irregularidades no campo consumerista. A suspensão de suas atividades é um golpe direto na transparência e no controle sobre o mercado financeiro.
O governo Trump não parou por aí. Entre as medidas de restruturação da Administração Federal, houve uma aparente tentativa de desmonte de sistemas de proteção a whistleblowers, pessoas que denunciam irregularidades no setor público e privado.
No primeiro mês da nova gestão, entidades de proteção a denunciantes soaram o alarme diante de ações concretas contra advogados e órgãos que garantiam essa proteção. Um dos casos mais emblemáticos foi a revogação da security clearance de Mark Zaid, um dos principais advogados de whistleblowers nos EUA, que tinha essa autorização há 25 anos. O governo simplesmente anulou sua licença, impedindo-o de continuar atuando em casos que envolvem informações confidenciais.
Na mesma linha, Trump ordenou a demissão sumária de Hampton Dellinger, chefe do Office of Special Counsel (OSC), órgão federal responsável tanto por proteger denunciantes quanto por receber e investigar denúncias de irregularidades no governo. Dellinger tinha um mandato fixo e, ainda assim, foi dispensado por e-mail com uma mensagem seca: “Em nome do Presidente Donald J. Trump, escrevo para informá-lo de que seu cargo como Procurador Especial do Escritório da Procuradoria Especial dos EUA está encerrado, com eficácia imediata.” Sem justificativa. Sem explicações.
Dellinger recorreu à Justiça, e uma juíza federal de Washington, D.C., concedeu uma liminar determinando seu retorno ao cargo, até que mais informações fossem obtidas. Mas a mensagem foi clara: o governo Trump não tem interesse de manter mecanismos de controle interno que possam representar obstáculos ao cumprimento de suas promessas de campanha.
Essas ações fazem parte de um movimento mais amplo. O FBI passa por uma verdadeira caça às bruxas, com expurgos internos e pressões políticas. O Departamento de Justiça, agora sob nova direção, dispensou procuradores da Divisão Criminal, em Washington, e mandou arquivar importantes investigações de corrupção, causando impactos no sistema de Justiça. A ordem para que a Procuradoria Federal do Distrito Sul de Nova York descontinuasse a ação penal contra o Eric Adams, prefeito da cidade, gerou uma reação em cadeia, primeiro com a renúncia da U.S. Attorney Danielle Sassoon, responsável pelo caso, seguida de uma dura retaliação determinada pelo Procurador-Geral Adjunto dos EUA, Emil Bove, que avocou o caso, para encerrá-lo em juízo; suspendeu cautelarmente dois procuradores assistentes da antiga equipe de Sassoon, os AUSA Hagan Scotten e Derek Wikstrom; e determinou a abertura de uma investigação disciplinar contra ela, por descumprir deveres hierárquicos. Independência funcional, inamovibilidade e vitaliciedade não são palavras que compõem o plexo de garantias dos procuradores dos Estados Unidos.
Num movimento paralelo, Trump baixou um decreto determinando a suspensão por 180 dias da aplicação da Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), a principal legislação americana contra o suborno transnacional, deixando empresas livres para pagar propinas no exterior, sem receio de punição federal nos Estados Unidos. O efeito pervasivo dessa medida terá alcance transnacional, noutros mercados.
Quanto aos denunciantes, as fontes informacionais sobre irregularidades no Executivo ficarão mais escassas, com a desestruturação de mecanismos de denúncia (whistleblowing). Soa mal. Parece ruim. Não é bom. É como se o governo Trump estivesse erguendo barreiras contra qualquer tipo de escrutínio.
As reações acaloradas de seus correligionários a decisões judiciais que suspenderam alguns de seus decretos causam mais perplexidade. Musk e senadores da base de apoio presidencial chegaram a defender o impeachment de juízes federais, usando de novo o argumento de que autoridades não eleitas pretenderiam tomar o lugar do presidente eleito na condução do país. Ocorre, porém, que, em todo Estado de Direito, os juízes controlam os atos do Poder Executivo. São os tais “juízes de Berlim”, da fábula do Moleiro de Sanssouci. Não custa lembrar que foi lá mesmo nos Estados Unidos que foi construída a doutrina do controle de constitucionalidade, num marcante precedente estudado em todas as faculdades de Direito do mundo: Marbury vs. Madison, decidido pela Suprema Corte norte-americana em 1803.
Como comentei noutro texto, a sigla MAGA não deveria ser lida jocosamente como Make Accountability Go Away. Se essa tendência continuar, o preço será alto. Sem mecanismos de controle ou com sistemas débeis, práticas autoritárias, abusos, assédios ou condutas corruptas podem se acentuar. Sem proteção a denunciantes, situações graves de abuso de poder e de malversação de recursos públicos podem jamais vir à tona. A importância dos whistleblowers foi destacada em sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), no caso Viteri Ungaretti vs. Equador (aqui). Sem segurança jurídica, agentes do FBI e procuradores do DoJ poderão ver-se desestimulados a agira; podem ter receio de atuar, porque correm o risco de, com a troca de governos, serem sumariamente dispensados ou acusados da prática de lawfare pela própria Procuradoria-Geral, como aconteceu com Sassoon, a ex-Procuradora-Chefe de Nova York.
É cedo ainda para afirmar que há um apagão da integridade ou uma destruição meticulosa dos freios e contrapesos que garantem a transparência na Administração Pública norte-americana. Mas os sinais não são bons. E esse é um alerta não apenas para os EUA, mas para todas as democracias que ainda acreditam que a responsabilização individual e o dever de prestar contas são pilares inegociáveis do Estado de Direito. Já não vivemos dos reis que não erram jamais. The King can do wrong.