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Opinião | Um país de privilégios

A questão, aqui, é que o privilégio não é crime, ao contrário, são as leis e regras que legitimam sua existência. Alguns poderiam até dizer: não é ilegal, mas é imoral. Tal discussão, contudo, seria para um outro artigo

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convidado
Por Rodrigo Augusto Prando

Bruno Carazza, em sua obra “ O país dos privilégios – Vol. 1: os novos e velhos donos do poder” (Companhia das Letras, 2024), nos apresenta uma interessante, profunda e necessária reflexão acerca de nossa sociedade, mormente, no que tange aos privilégios de determinadas categorias profissionais como, por exemplo, magistrados, membros do Ministério Público, a elite dos poderes Executivo e Legislativo, advogados públicos, fiscais da Receita Federal, militares e, ainda, os políticos.

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Obviamente, que os mais atentos trarão à tona, a partir do subtítulo, “os novos e velhos donos do poder”, a lembrança da clássica obra de Raymundo Faoro – “Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro” e, não menos importante, das formulações de Max Weber, especialmente, do “capitalismo politicamente orientado”.

Nas palavras de Carazza:

“Fechando um arco que vai de d. João I, rei de Portugal, na virada do século XV, a Getúlio Vargas, presidente do Brasil na década de 1930, Faoro conclui sua viagem de quase seis séculos pela nossa história destacando como o patrimonialismo foi se amoldando às transformações políticas do período. De colônia a sede do reino, depois passando pela Independência, pelo Império e chegando à República, o condicionamento de nossa elite empresarial aos favores concedidos pelo Estado persiste até hoje, com nosso desenvolvimento econômico politicamente orientado “resistindo, galhardamente, inviolavelmente, à repetição, em fase progressiva, da experiência capitalista” em nome de seus vários privilégios” (p. 19 e 20).

Ninguém melhor que o próprio autor para demonstrar seu percurso intelectual e, apresentar seu bem fundamento estudo acerca dos privilégios, social e historicamente arraigadas numa cultura política patrimonialista, cujo mecanismo do favor está presente na sociabilidade e, não raro, numa clara indistinção entre os espaços e interesses públicos e privados. Etimologicamente, nos lembra Carazza, privilegium é “lei privada”, em latim. A administração pública é, constitucionalmente, regida pela impessoalidade, generalidade (sem apresentar destinatários específicos) e abstração (voltada para hipóteses gerais e não casos concretos). Mas, para o referido autor: “Na prática, essas determinações de não discriminação, impessoalidade, generalidade, abstração e universalidade não costumam ter a devida atenção no dia a dia dos poderes Executivos, Legislativo e Judiciário no Brasil” (p. 20).

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A questão, aqui, é que o privilégio não é crime, ao contrário, são as leis e regras que legitimam sua existência. Alguns poderiam até dizer: não é ilegal, mas é imoral. Tal discussão, contudo, seria para um outro artigo e, no caso em tela, a ideia é convidar os leitores para que conheçam esse livro de Carazza, que assevera que:

“O propósito deste livro é demonstrar como o Estado brasileiro, por meio de decisões tomadas pelos três poderes, alimenta um círculo vicioso de desigualdade e ineficiência, concedendo toda a sorte de privilégios, de forma discricionária e sem critérios, a grupos selecionados, com elevado custo social” (p.23).

E, ainda:

“Seguindo a trilha indicada por Raymundo Faoro, a proposta é expor, no Brasil de hoje, como os velhos e os novos donos do poder continuam explorando um sistema político e econômico que conduz à concentração de renda e à desigualdade social” (idem).

Carazza faz questão de afirmar que os “privilégios não são necessariamente obtidos por meio de pagamentos ilícitos ou outras formas de corrupção”, são, na verdade, originários “em normas legislativas, decisões do Poder Executivo ou sentenças judiciais executadas segundo o devido processo legal” (p.24). Sob uma perspectiva científica, buscando a objetividade na investigação de seu objeto de estudo (o privilégio), o autor assevera que não pretende a condenação pública daqueles que desfrutam de tais privilégios e que seu empenho está na denúncia dos mecanismos de distribuição de benesses e não de apontar para as pessoas ou empresas que se beneficiam, de forma lícita, destes privilégios.

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A leitura do livro, contudo, para ilustrar a tese central apresenta, como não poderia deixar de ser, casos concretos, inclusive aqueles que ganharam notoriedade nos meios de comunicação. Difícil, para muitos, não se revoltar com tais “casos concretos” e com as falas e defesas enfáticas dos privilegiados em relação à manutenção de seus próprios privilégios. Há, para muitos, infelizmente, uma cultura que, no Brasil, pessoaliza as relações sociais. Temos, sociologicamente, imensa dificuldade de relações impessoais e quando o tema é privilégio estes são condenados enfaticamente para são para os “outros”, todavia, quando sou “eu” o detentor de privilégios, estes mudam de categoria, pois são direitos e “eu” os mereço. No fundo, em que pese vivermos numa sociedade assentada na democracia e em princípios republicanos repousa, em nossa alma, uma forte presença da sociedade estamental que, outrora, separa os homens de escol daqueles pertencentes à chusma, à patuleia.

Bruno Carazza não apenas envidou esforços na denúncia dos privilégios, mas, também, propõe, num dos capítulos, a discussão sem preconceitos de uma efetiva reforma administrativa, superando o senso comum de formulações como “marajás” ou “parasitas”. Vale, prezado leitor e prezada leitora, dedicar-se ao escrito de Carazza e, com isso, refletir que tipo de sociedade somos e aquela que aspiramos construir.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

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Rodrigo Augusto Prando
Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp. Professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Colaborador do Instituto Não Aceito Corrupção. Foto: Inac/Divulgação
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