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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Um país submergente

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Por Júlio Marcelo de Oliveira
Atualização:
Júlio Marcelo de Oliveira. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Estamos acostumados a ouvir e ler que o Brasil faz parte dos países emergentes, expressão que substituiu o rótulo países em desenvolvimento. A expressão carrega em si um elemento de positividade, de otimismo, de crescimento e prosperidade, a indicar um caminho de progresso constante que nos levará, enfim, a integrar o grupo dos países desenvolvidos.

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Contudo, analisando a evolução do país nas últimas quatro décadas, vemos que o Brasil, a despeito de tantas riquezas naturais e tanto potencial, vai ficando para trás, regredindo em alguns indicadores ou progredindo menos que outros países. Submergente seria uma palavra que descreve melhor nossa trajetória.

Nos últimos 40 anos, o Brasil caiu de 50º para 85º no ranking de países mais ricos, pelo critério da renda per capta. Segundo projeções do FMI, continuaremos em queda até 2026, chegando à 90ª posição. Na América Latina, estamos atrás de Chile, México e Argentina e seremos ultrapassados em breve pela Colômbia.

Se olharmos nosso Índice de Desenvolvimento Humano, estamos praticamente estagnados nos últimos dez anos, abaixo da média da América Latina. No último ranking, divulgado no final de 2020, caímos 5 posições, passando de 79º para o 84º país em termos de desenvolvimento humano, entre 189 nações. Na América Latina, estamos atrás de Chile (43º), Argentina (46º), Uruguai (55º), Panamá (57º), Costa Rica (62º), Cuba (70º), México (74º) e Peru (79º).

Os motivos para nossa estagnação e atraso são em grande parte conhecidos há muito tempo: a falta de competitividade do Brasil, a baixa escolaridade de nossa população, a baixa produtividade de nossa economia, a necessidade de reformas variadas (fiscal, administrativa, trabalhista); mas há outros que o país ainda mal se deu conta: o alto grau de corrupção e a baixa qualidade de nossas instituições.

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No fim do século passado, a corrupção era vista com naturalidade em grande parte do mundo, como uma espécie de azeite necessário para lubrificar engrenagens da economia e de sua relação com o Estado. Em vários países desenvolvidos, era lícito às empresas transnacionais contabilizarem despesas com o pagamento de propina feito a autoridades de outros países para obtenção de negócios.

O paradigma mundial mudou completamente. A tônica no ocidente hoje é de combate à corrupção, que passou a ser percebida como fator de entrave ao desenvolvimento econômico e elemento associado a outras formas de criminalidade, como o tráfico de drogas, de armas e humano, além do terrorismo.

O índice de percepção da corrupção, produzido pela Transparência Internacional, vis a vis a renda per capta ou o IDH dos países, revela que não há país desenvolvido com elevado grau de percepção da corrupção. É natural que seja assim. A corrupção faz a economia e a sociedade funcionarem com base em incentivos incorretos. Não se escolhem os melhores projetos, as melhores iniciativas, os profissionais mais competentes, os melhores produtos ou serviços, mas aqueles que oferecem maior oportunidade de ganho ilícito. O resultado é perda de competitividade, de talentos e de oportunidades. O acumulado dessas perdas ao longo de tempo se traduz em baixo crescimento econômico, baixa produtividade e baixo ou nenhum avanço em desenvolvimento humano. Não causa estranheza que nossa posição no ranking da percepção de corrupção seja a de 96ª, com índice de 38 pontos, considerado ruim.

Um dos pais da União Europeia, Jean Monnet, dizia que nada é possível sem as pessoas e nada perdura sem as instituições. Na obra "Por que as Nações Fracassam?", Daron Acemoglu e James Robinson demonstram que a qualidade de uma democracia e o grau de desenvolvimento de um país podem ser medidos pela qualidade de suas instituições e que elas desempenham papel decisivo no destino de uma nação.

Nossas instituições são mais parte do problema que da solução. Não estamos onde estamos por acaso. É lugar comum falar que as instituições brasileiras, em nossa jovem democracia, funcionam. É verdade, funcionam, mas funcionam muito mal e estão piorando. É incrível o quanto são custosas e o quanto funcionam abaixo de seu potencial. O panorama é muito ruim.

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O sistema político brasileiro tem-se revelado campo fértil para a proliferação de uma infinidade de partidos políticos sem nenhuma ideologia, muitos deles criados apenas para apropriação de fatias dos cada vez maiores fundo partidário e fundo eleitoral. Temos castas partidárias que vivem como reis às custas do fácil dinheiro do contribuinte. Sedes e residências luxuosas, jatinhos, hotéis e restaurantes caros são despesas rotineiramente custeadas pelo brasileiro para manter os 32 partidos políticos registrados e em funcionamento, cujos nomes a população sequer consegue lembrar.

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No Congresso Nacional, a dinâmica de aprovação de projetos de lei passa pelo loteamento de cargos do Poder Executivo e pela cooptação e intimidação dos parlamentares por caciques políticos tendo como instrumento recursos orçamentários distribuídos de forma secreta.

O loteamento de cargos é discutido à luz do dia e em praça pública. Até mesmo em órgãos de natureza estritamente técnica, como o CADE e as agências reguladoras, as indicações passam por critérios de apoio político.

O orçamento secreto é o mais recente instrumento de compra de votos e distribuição ilícita de recursos de nossa história. Nada mais inconstitucional e antirrepublicano que o orçamento secreto. As emendas parlamentares sequestraram grande parte do orçamento nacional e já representam um quarto das dotações destinadas aos gastos discricionários do governo, com evidentes prejuízos para a qualidade do gasto público federal.

Em estudo recente, o pesquisador Marcos Mendes revela que, nos países desenvolvidos, apenas 2% ou menos dos gastos discricionários são objeto de alteração pelos respectivos parlamentos. No Brasil chegamos a 24%, o que compromete a qualidade de nosso processo orçamentário e do funcionamento de nossa democracia.

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O Poder Judiciário brasileiro, além de caro e ineficiente, é responsável por grande parte de nosso atraso institucional e econômico. A decisão que não admitiu o início do cumprimento da pena após condenação em segunda instância deixou o Brasil em esdrúxula posição no quadro das nações, garantindo impunidade para quem tem recursos financeiros suficientes para numerosas interposições de recursos às instâncias superiores. Sucessivas decisões para anular operações de combate à corrupção por filigranas processuais, até mesmo com aplicação retroativa de regras inéditas, dão bem o tom de como o STF e o STJ enxergam seu papel no combate à corrupção. Não adianta a lei definir corrupção como crime. O sistema está desenhado para não funcionar e assim o faz orgulhosamente, como se estivesse defendendo a população brasileira, os direitos humanos e o Estado Democrático de Direito. Nossas estatísticas criminais não mentem. O colarinho branco não é punido no Brasil. O sistema penal está montado para vigiar e punir pretos, pobres e periféricos.

Nos tribunais de contas, a realidade não é diferente. A luta política para integrar essas cortes, a influência que seus membros exercem na política, a cooptação de membros mediante indicação de nomes para cargos no governo ou no Judiciário ou, ainda, nomeações de membros para altos cargos no futuro revelam a face de uma instituição que, apesar da excelência de seus quadros de auditores, não entrega à sociedade brasileira o império impessoal da lei, marca das sociedades democráticas modernas. Sem enforcement, as leis passam a ser meros dados da realidade, a serem considerados quando convém. Veja-se o caso, para citar apenas um, da ferrovia Transnordestina, uma obra bilionária, entregue há vários anos sem licitação a um grupo privado, que até hoje não teve sua patente ilegalidade enfrentada pelo TCU.

O que estabiliza esse sistema, criando um equilíbrio bastante sólido e consistente entre seus elementos, funcionando como verdadeiro amálgama, é o foro privilegiado, o cimento da pax romana na protorrepública brasileira. Por meio do foro privilegiado, garante-se não apenas um espaço especial de julgamento, mas também a designação de um investigador e acusador especial, politicamente escolhido. No caso de ministros de estado, parlamentares federais e autoridades dos tribunais superiores, somente o Procurador-Geral da República pode oferecer denúncias em caso de cometimento de crimes.

O atual PGR, crítico ferrenho da operação Lava Jato, não tem se notabilizado pelo combate à corrupção. Segundo editorial do Estadão de 17/03/2022, sua atuação teria como características a omissão, a passividade e a subserviência aos interesses do governo. O duro diagnóstico desse importante veículo de imprensa revela que parte expressiva da sociedade não considera a atuação do PGR independente e satisfatória.

Vê-se, pois, que nossas instituições estão muito abaixo do potencial de que dispõem para atuar de forma a contribuir para que o Brasil se transforme em uma real república e democracia, em que todos são iguais perante a lei. Nossas instituições parecem não se dar conta de seu papel no desenvolvimento do país. Aparentam viver para si mesmas, perdidas em rituais de autolouvor. Grande parte de seus integrantes estão descolados da realidade, inebriados em suas próprias bolhas de poder. Muitos não se sentem servidores públicos, comportam-se como nobres medievais, como antigos cortesãos, colocam-se acima do normal das gentes, como tutores da sociedade, reivindicando tratamento privilegiado e superior, compatível com a fidalguia que julgam possuir. Para esses, 1789 ainda não chegou.

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Essa não é uma visão pessimista ou amarga. É apenas realista. O Brasil é assim, atrasado, patrimonialista, tolerante à corrupção. Sem realismo, sem clareza quanto ao estado de subdesenvolvimento cultural e institucional em que estamos, não vamos conseguir transformar nada. É preciso realismo no diagnóstico e coragem e esperança no tratamento. Tudo depende de nossas escolhas. Por ora, com aquilo que fizemos de nós mesmos, somos apenas um país submergente.

*Júlio Marcelo de Oliveira, procurador de Contas junto ao TCU

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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