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Opinião|Um voto de coragem

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Por Ana Carolina Piovesana* e Daniel Kignel*

É impossível tratar do histórico voto da ministra Rosa Weber a respeito da descriminalização do aborto sem que se reconheça, desde logo, quão árdua tem sido a luta pelos direitos individuais. A sociedade aguarda, há anos, a necessária análise acerca da realidade de milhares de meninas e mulheres que são impedidas de decidir o seu próprio futuro, e a busca por uma abordagem séria sobre o assunto, apesar de constante, sempre esbarrou na evidente indisposição do Estado para decidir temas complexos.

Presidente do Supremo, ministra Rosa Weber Foto: Carlos Moura/STF

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Exemplo disso é a (não) atuação do Congresso Nacional, que, a despeito de sua função constitucional de legislar a respeito de questões essenciais à preservação da vida, da saúde e da intimidade, parece preferir a segurança da omissão à coragem de enfrentar a desafiadora questão do aborto. Não por acaso, a pergunta “Vossa Excelência é contra ou a favor do aborto?” está presente em toda e qualquer sabatina realizada no âmbito do Poder Legislativo. Espera-se a resposta mais evasiva possível, e os interrogados raramente frustram tais expectativas.

Não parecia haver disposição por parte de nenhuma autoridade competente para modificar esta realidade tão confortável àqueles que deveriam tratar do tema, e ao mesmo tempo tão preocupante àquelas que veem tolhidos os seus direitos mais básicos, como a saúde, a intimidade e a autodeterminação. Mas tudo mudou no final do mês de setembro de 2023, data que certamente ficará marcada por uma das demonstrações de coragem mais emblemáticas da democracia brasileira.

O voto da ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 442, não é apenas uma manifestação judicial pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Tal entendimento, na realidade, é apenas a conclusão de um raciocínio detalhado, que destaca a incessante luta das mulheres pela superação da estigmatização histórica a elas imposta, bem como a necessidade urgente de atribuir proteção real aos seus direitos reprodutivos.

O voto escancara ainda uma realidade incontornável, que não pode mais ser ignorada: é patente a ineficácia das normas penais como instrumento legítimo para lidar com a interrupção da gestação. O poder coercitivo do Direito Penal tem se mostrado inútil frente aos casos de aborto que seguem ocorrendo, e ignorar essa realidade, impedindo a reflexão a respeito de outros caminhos que poderiam ser seguidos para resguardar os direitos personalíssimos dos envolvidos, é postura que beira a irresponsabilidade.

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Ana Carolina Piovesana e Daniel Kignel Foto: Divulgação

A ministra Rosa Weber ousou dar o mais importante passo em uma trajetória que, certamente, terá como ponto de chegada a revisão das normas penais vigentes a respeito do tema. Isso, no entanto, não significa que não haja oposição ferrenha ao posicionamento constante de seu voto. Poucos assuntos têm o poder de causar embates tão intensos quanto a interrupção voluntária da gravidez.

Ainda assim, é impossível ignorar o paradoxo de parte dos argumentos contrários ao direito ao aborto. Aqueles que sustentam que o procedimento seria um desrespeito ao direito à vida do nascituro se esquecem de que o aborto clandestino – muitas vezes a única saída de meninas e mulheres pobres, que já são mães e que não têm condições financeiras de criar mais um filho – é uma das principais causas de mortalidade de gestantes.

Há ainda outros, que defendem que o Código Penal já permite o aborto em situações específicas (como a gravidez decorrente de estupro ou que ponha em risco a vida da gestante), o que tornaria desnecessária a ampliação do rol permissivo, posição que ignora sumariamente a ineficácia de tais normas quando se tenta colocá-las em prática. É difícil esquecer o episódio recente de uma criança de 11 anos de idade, impedida pelo Poder Judiciário de realizar um aborto após ter sido estuprada.

Não é mais possível conceber que mulheres fiquem sujeitas ao arbítrio do Estado para que exerçam com plenitude os direitos pelos quais lutam há gerações. Como bem ressaltou a presidente do STF, o direito ao voto e o direito a condições dignas de trabalho foram conquistas obtidas após décadas de luta. É chegada a hora de o direito à intimidade e à autodeterminação alcançar a mesma plenitude. Rosa Weber deixa o tribunal não apenas com um legado jurídico invejável, mas também um legado de coragem.

*Ana Carolina Piovesana, advogada criminalista, sócia do escritório Oliveira Lima & Dall’Acqua Advogados

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*Daniel Kignel, advogado criminalista, sócio do escritório Oliveira Lima & Dall’Acqua Advogados

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