Entre todos os embates teóricos e práticos em que nos vemos enredados na contemporaneidade, um deles ocorre nas sombras. Não recebe da mídia sequer nota de rodapé. Nenhuma das grandes religiões enxerga nele qualquer relevância digna de concílios ou cismas. Nem nos grupos de WhatsApp, sempre tão permissivos, ele aparece com destaque. Talvez seja só mais uma vítima das rolagens furtivas de tela ou ainda, mais um item salvo para mais tarde que nunca é recuperado. Trata-se do embate entre o pessimista e seu rival pós-moderno: o #gratiluz.
Não é um confronto cujos desdobramentos farão o dólar, sempre tão volátil, oscilar de maneira vertiginosa. Tampouco fará com que jovens imberbes, sempre tão instáveis, peguem em armas para defender as cores e as bandeiras de um dos lados contra o outro. Jamais a cúpula do G-20 verá necessidade de postular protocolos para mitigar os efeitos dessa querela no tabuleiro de xadrez da geopolítica.
Passemos aos fatos. Apesar de tudo que nos ocorre diariamente, partindo desde as pequenas desventuras cotidianas, como a porta do elevador que se fecha em nosso rosto quando estamos atrasados, passando pelo resto de etiqueta que insiste em ficar na blusa e permanece nos pinicando o pescoço, pela miríade olfativa presente logo cedo no transporte público, onde diariamente a lei newtoniana da impenetrabilidade dos corpos é posta à prova do Paraíso à Consolação, para chegarmos até as grandes catástrofes naturais, que, em segundos, destroem aquilo que levou anos para se alcançar e, principalmente, às catástrofes humanas, em que aqueles jovens imberbes, agora sim, a mando de Generais, Almirantes e Marechais, se embrenham para defender cores e bandeiras em conflitos sobre os quais pouco sabem ou entendem. Há, apesar disso tudo, pasmem, um sentimento cada vez menos tácito de que deve-se priorizar os pensamentos positivos em detrimento de emoções negativas. Há, inclusive, quem afirme peremptoriamente que os índices de positividade que o sujeito cultiva em seu sistema límbico não apenas influenciam os resultados na busca da prosperidade e do sucesso de um indivíduo (seja lá o que estes conceitos signifiquem atualmente), mas como esses índices são determinantes para tais resultados.
Voltaire nos esboçou um rascunho disso tudo na figura do Cândido e de seu mestre Pangloss. Os frutos das luzes do século 18 fizeram com que um sentimento de bem-aventurança nos embalasse em sonhos tão coloridos a ponto de imaginarmos o mundo em que vivíamos como o melhor entre todos os mundos possíveis. A dinâmica da história nem sempre é tão simples assim, mas o que se viu depois disso foi um esforço conceitual claramente no sentido contrário. O pessimismo filosófico surgido com Schopenhauer no século 19 tentou mostrar ao homem, tão orgulhoso de seus feitos, a miséria de sua condição.
Esqueçamos os autores e os argumentos que usaram. Atenhamo-nos aos fatos contemporâneos: hoje pessoas ganham dinheiro (aliás, muito dinheiro) vendendo positividade. Influencers, blogueirinhas e coaches inundam as redes sociais com discursos cheios de anglicismos e revestem nossas roladas de tela infinitas de uma pretensa culpa por nosso pretenso fracasso, fruto de nossa falta de comprometimento com uma postura existencial “good vibes only” de estrita observância. Gestores, conduzem suas equipes, ostentando lábaros de abstrações como “liderança vulnerável” e “resiliência” que, no frigir dos ovos, se traduzem apenas no maior ou menor grau de culpa ecológica que os empregados sentem ao usar mais de duas folhas de papel para secarem suas lágrimas no banheiro da empresa.
Cumpre, portanto, tentarmos reequilibrar esse jogo com uma pitada de pessimismo. Não de maneira radical, pois o extremo oposto do #gratiluz é o pessimista estilo hiena Hardy: “Oh céus, oh vida, oh azar”. Tenhamos um pessimismo esclarecido, pois tão insensato quanto fechar os olhos para a dor, o sofrimento e o desamparo humanos, é também glamorizar a dor e cultivá-la. Saibamos que a vida não é passeio, mas que pode, sim, ter alegres momentos de distração. Como um sábio certa vez disse, ela esquenta, esfria, aperta e afrouxa, mas o que a vida quer de nós é coragem. Tenhamos, pois, coragem, pois não se forja bons marinheiros em mar calmo. Isso, é claro, diante de como vão as coisas, se ainda houver mar...