“A música é o vínculo que une a vida do espírito à vida dos sentidos” declarou certa vez o compositor alemão Ludwig van Bethoven, um dos maiores do gênero em toda a história. A frase carrega em si um significado bastante interessante sobre o quanto que a expressão cultural da música, suas letras e melodias dizem sobre o sentimento internalizado de um indivíduo, suas carências, ambições, felicidades e desejos. Os grandes hits, nesse ínterim, têm a capacidade de agregar coletivamente esses pensamentos que são reveladores para se entender as mudanças pelas quais o povo brasileiro passa e as conexões de palavras-chaves utilizadas em cada período para demonstrar o estado de ânimo de um povo.
Quando analisados dois períodos do governo Lula, fica clara a diferenciação da expressão musical e o quão anunciadora ela pode ser para compreensão da visão de mundo das pessoas naquele espaço de tempo. Em 2006, Lula concorria à sua primeira reeleição, algo que se aproxima de ser uma tentativa de novo. Em 2026, 20 anos depois, o atual presidente da República ainda lidera os principais cenários das pesquisas de opinião, mas em um ambiente absolutamente diferente e muito mais adverso do que aquele, em que venceu o seu hoje aliado e vice-presidente Geraldo Alckmin.

No ano de sua reeleição, as paradas de sucesso brasileiras eram dominadas por músicas que se relacionavam diretamente a questões de avivamento da natureza. ‘Quando a chuva passar” de Ivete Sangalo foi a música mais ouvida de 2006. “Desenho de Deus”, de Armandinho, “O Sol”, da banda mineira Jota Quest, “Ai, ai, ai...” de Vanessa da Mata, em que o refrão diz para tomar um banho de chuva, estão entre as 10 músicas mais tocadas das rádios. O funk melódico de MC Leozinho e o reggae de Edu Ribeiro completam essa lista de músicas entoadas com um ritmo mais leve e que têm em comum conexão o fato de exaltarem coisas naturais.
Do ponto de vista coletivo, o que se pode perceber é um momento de esperança e leveza. Ao trazer a natureza para o centro das canções, o brasileiro parece estar em sintonia com um mundo mais belo e feliz. Em 2006, Lula encerra sua primeira passagem com 57% de aprovação popular, segundo o extinto instituto Ibope, referencia à época. A Fundação Getúlio Vargas iniciou neste mesmo ano um projeto que revelava o índice de felicidade do brasileiro e este era crescente. Com poder de compra e uma expectativa de um boom econômico, o Brasil vivia com a esperança de fazer se consumar a velha frase de que seria o “país do futuro”.
Em sua fala de vitorioso para a reeleição, Lula exclamou que estava recuperando a dignidade do povo brasileiro e em um discurso repleto de palavras de ordem fazia questão de mostrar uma grande diferença para sua primeira fala há quatro anos, quando ganhara pela primeira vez, trazendo concretude e entrega para a população. A natureza ao fim e ao cabo é um mistério que se reúne de esperanças e calmarias, mas que é visível e é concreta. As pessoas tocam no que é natural, podem saborear o que a natureza traz, mas mesmo assim ela tem a capacidade de provocar o sentimento de futuro e atiçar a paz. Não à toa, a indústria musical propõe o som da natureza para relaxamentos e momentos de introspecção interior. Reflexão, paz e bem estar.
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Esse cenário é muito distante da atual situação brasileira e não obstante absolutamente fora de sintonia com o que os hits do momento expressam. Uma alteração significativa nos gêneros musicais já aponta pra essa nova realidade. O sertanejo de “sofrência” e o funk com mais sexualização têm em comum um tema que está presente na maioria das letras entre as dez músicas mais tocadas de janeiro de 2026, que é a traição. Os sons mais impactantes e fortes como os do funk, mostram um ritmo menos cadenciado e mais duro.
A líder de audiência vocalizada pela dupla Guilherme & Benuto, chamada “Sujeito Homem” é uma ode a um relacionamento para superar traições. Gusttavo Lima em “A Noite” revela a culpa que tem em ter se afastado da mulher que ama, após uma traição implícita. Outro grande sucesso, a música “Mentirosa”, com a participação de Wesley Safadão, conta a história da namorada que foi a uma festa sem o consentimento do seu namorado e como o próprio nome diz, mentindo. A sensação de ter sido enganado parece estar na alma do brasileiro. Essa vocalização traz consigo uma mensagem de que aquela euforia vivida na primeira década desse século, não passou de um reles voo de galinha.
A falta de confiança nas instituições, de maneira geral, expressa esse momento de descrédito generalizado. Mesmo instituições que sempre tiveram o apreço da população, como Igrejas e Exército, têm visto sua relação deteriorar com o povo brasileiro. A imprensa é uma das que mais tem sofrido com essa situação, bombardeada pelas fake news e com uma dificuldade enorme em conseguir ser crível para os brasileiros, principalmente com a polarização política e a necessidade por vezes de tomar lados.
O terceiro mandato de Lula passa por uma crise sem precedentes em relação à sua história enquanto governante. A quebra de expectativa com o seu governo é grande e muitos eleitores do atual presidente estão insatisfeitos com os rumos do Brasil. Pesquisa PoderData mostra a queda de popularidade de Lula entre o seu público mais fiel, o sertanejo do interior nordestino. A sensação de traição pode ganhar ares ainda mais dramáticos pra Lula, que mesmo em liderança numérica nas pesquisas, vê candidatos do campo bolsonarista com muito menos conhecimento que o dele, praticamente em empate técnico, faltando ainda um bom tempo para o processo eleitoral.
Com uma nova roupagem de marketing, após a troca do comando da comunicação governamental, Lula tem estado mais ativo nas redes sociais e aparecendo mais em público, saindo de um certo isolamento que havia buscado desde a eleição municipal, onde foi bastante coadjuvante nas principais campanhas de seu campo político. O problema, no entanto, é que não dá pra comunicar o que não acontece. O governo precisa de entregas reais, que impactem na vida das pessoas.
Para recuperar a esperança perdida e tentar reacender essa chama de esperança que já teve brilhante lá atrás, o governo terá muito trabalho. Mas, mais do que isso, se não entender que o mundo de hoje, com as checagens e a espionagem da traição ligadas a todo o vapor, muito em razão das redes sociais, não permite grandes ilusões e pode desmascarar qualquer tentativa infundada de ludibriar pelo marketing, Lula não terá hipóteses em se tornar viável para a reeleição. Mais marketing sem entrega será apenas a consolidação do momento vivido pelo brasileiro e vocalizado nas músicas de sucesso: um povo traído e cada vez mais sem esperança.