BRASÍLIA - Ex-chefes de delegações ambientais brasileiras em fóruns internacionais questionam a presença de uma equipe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na Cúpula do Clima das Nações Unidas, a COP 25, realizada em Madri, Espanha. Nomes como a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, que negociou o Acordo de Paris, e o embaixador Everton Vargas, quadro histórico do Itamaraty na área ambiental, afirmam que a ação não tem precedentes.
Como revelou o Estadão, o governo Jair Bolsonaro despachou em dezembro do ano passado quatro agentes da Abin na comitiva. O objetivo, segundo um deles, era captar críticas à política ambiental do Brasil. Todos colheram informações sobre atividades de organizações não-governamentais (ONGs) e fizeram relatos sobre representantes nacionais e estrangeiros. Credenciados pelo governo com crachá de delegação desde a rodada de “negociação”, tiveram o vínculo com a Abin omitido.
Titular do Ministério do Meio Ambiente entre 2010 e 2016, nas gestões de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Izabella Teixeira conta que havia suspeitas da comitiva brasileira e até de países estrangeiros sobre o envio de agentes de inteligência do governo Bolsonaro. Um dos rostos brasileiros mais conhecidos na COP, Izabella foi a Madri como convidada do governo espanhol e diz que, assim que chegou, autoridades de mais de um país lhe confidenciaram a desconfiança.
“Quando cheguei lá, algumas pessoas me abordaram perguntando sobre isso, se havia pessoas da inteligência brasileira na reunião, estrangeiros inclusive, me perguntando se era verdade. Eu disse que não sabia. Eu de fato desconhecia e fiquei surpresa com a notícia do Estadão confirmando”, disse a ex-ministra.
Presente no círculo ambiental internacional desde 1992, quando a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima foi assinada, a ex-ministra afirma que as delegações sempre foram organizadas de forma transparente e com critérios bem definidos. Segundo ela, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência e a Abin nunca participaram de negociações ambientais multilaterais.
Negociadores
Izabella afirma que antes as delegações do Executivo eram formadas com base em caráter técnico e científico, com servidores que subsidiavam as discussões e a equipe de negociadores do Meio Ambiente e do Itamaraty. Além disso, havia representantes enviados para debates nos eventos paralelos que ocorrem nas Nações Unidas durante a COP, sem contar os membros de governos estaduais e municipais e do Congresso.
Em uma concessão que rendia elogios dentro e fora do País, o Ministério das Relações Exteriores costumava ceder crachás à sociedade civil desde a Eco 92, realizada no Rio, quando a ONU passou a admitir esse tipo de participação.
“Não tem precedentes. Eu chefiei e fui membro da delegação brasileira durante vários anos e nunca vi funcionário da Abin nas delegações que vão a conferências multilaterais. A Abin e o GSI nunca participaram de negociação em conferência de clima. Isso não é normal. Se não foram negociar, eles foram fazer o quê? Eles fizeram que discurso em nome do Brasil? Quais os critérios o Itamaraty está adotando para montar as delegações brasileiras e quais os papéis dessas pessoas? Alguém deu ordem e isso não está tratado sob sigilo”, questiona Izabella, ex-servidora de carreira.
Para a ex-ministra, o fator mais importante é uma mudança nos critérios do governo Bolsonaro, que pode alterar o perfil das delegações brasileiras nas discussões sobre Meio Ambiente nas Nações Unidas. Izabella afirmou que as comitivas sempre foram organizadas pelo Itamaraty por meio de consultas transparentes. Disse ainda que, como ministra, recebia todos os nomes de quem participava.
“O atual governo mudou os critérios de composição das delegações de meio ambiente. Até então, não pressupunham participação de agentes de inteligência, porque não tinham função. Estavam orientados para pessoas que participam de negociações ou envolvidas nos eventos paralelos representando o País”, destacou Izabella. “Em conferência das partes há duasmissões: uma é negociar, não só o texto, como receber o secretário-geral da ONU, fazer reuniões bilaterais e relações diplomáticas; outra é discursar em nome do Brasil."
Izabella observou que, nessas ocasiões, também se vai a eventos paralelos representar o Brasil em painéis empresariais, da própria ONU e de ONGs do mundo todo. "Qualquer pessoa que não for para isso vai para passear ou para outras missões, como essa do GSI", disse.
Presente em Madri como assessor internacional do governo do Pará, o embaixador Everton Vargas também afirmou não ter notado a presença dos oficiais da Abin. “Em todas as COPs das quais participei, jamais houve pessoas que não fossem da área do Meio Ambiente, Agricultura, Energia, Ciência e Tecnologia. Sempre tivemos grandes delegações, mas não havia gente da área de inteligência”, relatou o diplomata.
Influência
Ex-diretor do Departamento de Meio Ambiente e Temas Especiais, Vargas afirma que as discussões nessas conferências são “maçantes” e envolvem milhares de pessoas e temas técnicos. O diplomata observou que o trabalho dos agentes pode ter sido pouco proveitoso para os propósitos do serviço de inteligência. No seu diagnóstico, é “muito difícil” que os agentes possam ter, de fato, influenciado posições adotadas pelo Brasil nas negociações.
Na edição de Madri, 22 mil pessoas foram à conferência. As conversas formais ocorrem nas sessões, mas há articulações por todos os lados entre diplomatas brasileiros e estrangeiros, nos corredores, restaurantes e cafezinhos. Lobistas e ativistas, além de parlamentares, também circulam por ali.
“A grande maioria das pessoas que vão nessas grandes delegações em geral fica isolada, porque os temas discutidos no plenário da COP e nas comissões são extremamente maçantes para quem não tem formação naquilo. Os três ou quatro agentes de inteligência ficaram lá vendo quem andava pelos corredores, tomando cafezinho e é tudo. De repente, podem ter participado de alguma reunião, inclusive no âmbito da delegação brasileira. Mas é difícil porque eles não teriam noção de quem é quem lá, e precisa ser gente hábil em idiomas”, disse Vargas.
Fabiana Alves, coordenadora de Clima e Justiça do Greenpeace no Brasil, avalia que o governo abandonou o diálogo e atua com o objetivo de gerar "medo" na sociedade civil. "As delegações iam sempre às reuniões abertas a dialogar. De repente, elas agora recebem ordens, não estão mais abertas e têm integrantes da Abin. Passa uma mensagem de ameaça", diz Fabiana. "Não há ameaça ao governo ou à soberania do País dentro dessas reuniões da COP. É um ambiente de negociação para um acordo representativo da população mundial.”
Entidades de classe dos agentes disseram ser missão da Abin atuar em temas estratégicos, como a questão ambiental. A Associação Nacional dos Oficiais de Inteligência afirma que ir à COP 25 "permitiu aos quadros participantes fazer correlações mais abrangentes, profundas e fidedignas sobre a temática, sendo inegável o valor de se conhecer as dinâmicas de um processo 'in loco'". Para a Associação dos Servidores da Abin, a participação deles "reflete a modernização e o aprimoramento da inteligência brasileira".
Um ex-chefe do GSI afirma que há interesse estratégico do Brasil em acompanhar as discussões em âmbito global, ainda mais no governo Bolsonaro. O presidente é visto como inimigo da agenda verde dentro e fora do País. Um auxiliar do ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, disse que o GSI tem por hábito acompanhar e reportar as reuniões internacionais de vulto.
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