O atraso no começo da vacinação contra a COVID-19 no Brasil, iniciada apenas em 17 de janeiro (quando mais de 50 países já haviam iniciado seus programas de imunização), evidenciou o despreparo das autoridades que não se organizaram com a antecedência devida para evento de porte nunca antes visto. É errado, porém, apontar o dedo apenas para o governo, como se fosse o responsável exclusivo pelas nossas mazelas relacionadas à pandemia. Sem dúvidas, é o principal. Mas, devemos reconhecer, não é o único.
O que cada um de nós está fazendo nesse momento crítico?
Noves-fora a falta de conscientização da população - sobretudo a jovem - em relação às necessárias medidas de isolamento social, enfrentamos outra epidemia, entranhada em nossa cultura desde a colonização portuguesa: a falta de consciência coletiva. As festas e aglomerações clandestinas são apenas um dos sintomas dessa terrível doença. Provavelmente, a face visível da total falta de empatia em relação ao próximo.
A chaga social, porém, é muito mais grave.
A onda de denúncias sobre os "fura-filas" chegou a níveis inimagináveis até para os mais céticos acerca do eterno "jeitinho" brasileiro: a cada 1341 doses aplicadas, existe uma denúncia sobre a aplicação da vacina em alguém que não se enquadra nos padrões de prioridade estabelecidos.
Pouca coisa não é. Muito pelo contrário.
Diante desse contexto, na última quinta-feira a Câmara aprovou um projeto de lei que criminaliza tal conduta. Fez bem. Ao que parece, os parlamentares começaram a ouvir a voz que vem da rua. Com (muito) atraso, conseguimos andar para frente. Pelo menos um pouco.
Tornar crime tal conduta, no entanto, ainda não resolve o problema. Não há dúvidas de que a punição serve para dissuadir aqueles que, diante da escassez, fazem valer a velha máxima: "farinha pouca, meu pirão primeiro". Dessa assertiva, deriva outra ainda mais nociva ao nosso conflagrado quadro social - quem não se lembra da propaganda do cigarro Vila Rica, que apregoava na longínqua década de 1970: "gosto de levar vantagem em tudo, leve vantagem você também". Sem dúvidas, uma fotografia do Brasil daquele tempo.
Será ainda um retrato atual?
Essa é uma pergunta que não quer calar. Entretanto, o quadro atual é distinto e a "malandragem" despretensiosa de outrora hoje gera consequências muito mais graves. Assim, diante da enxurrada de denúncias e das limitações próprias da fiscalização necessária para vigiar uma campanha de vacinação em massa em um país de dimensões continentais, um ingrediente é fundamental para que o plano nacional de imunização dê certo - a consciência individual de cada brasileiro.
Há poucos dias, o vice-presidente Hamilton Mourão tachou de "sem-caráter" aqueles que furam a fila. Acertou. Contudo, é possível ir mais além. Caráter é uma questão subjetiva e pode variar de acordo com o entendimento individual. A questão de fundo é também sobre caráter, mas o dilema é muito mais profundo.
Em verdade, se trata de uma questão sobre integridade. Ou, em termos mais precisos, a falta que a disseminação dessa virtude faz à sociedade.
Um caso recente e um tanto quanto caricato reflete bem a nossa atual realidade. O secretário de Saúde do município goiano de Pires do Rio furou a fila da vacinação, imunizando a si próprio e a esposa. Nenhum dos dois se encaixava nos grupos prioritários. Apanhado no flagra, reconheceu o erro. Sinal de inteligência, sem dúvidas. A sua (duvidosa) justificativa, no entanto, não deixa de soar como a melhor síntese do espírito destes tempos egoístas: queria preservar a saúde da "mulher de sua vida".
Esquece-se, todavia, que não apenas ele tem entes queridos. Olvida-se, da mesma forma, que ao privilegiar o "amor de sua vida", passando à frente das prioridades previamente estabelecidas, sua ação pode surtir o efeito oposto para o amor da vida de outra pessoa - retirando-lhe a própria vida ao sonegar o acesso a um bem escasso, como é a vacina nos dias atuais.
Passa-se, assim, a questão fundamental que deve estar no centro do debate: quem for flagrado furando a fila, deve receber a segunda dose? Essa é uma pergunta de grande complexidade, que comporta tanto digressões médicas quanto jurídicas. Se por um lado, a imunidade coletiva só será plenamente alcançada com boa parte da população imunizada (o que inclui a aplicação da segunda dose), por outro, garantir tal acesso aos fura-filas equivaleria a condecorar em praça pública os espertalhões de plantão.
Chega a ser intuitivo que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. Ainda mais em um país como o Brasil, tão carente de exemplos. A mensagem que tal permissividade inevitavelmente transmitirá ao grande público é de que o crime compensa. Não é necessário muito esforço para imaginar a natural consequência disso - um verdadeiro estímulo a que se continue tentando passar à frente dos grupos prioritários.
Embora haja argumentos para os dois lados e (muito provavelmente) essa questão venha a ser judicializada, o que está realmente em jogo é algo muito mais sensível e caro à nossa sociedade: continuaremos a ser eternamente o país do "jeitinho"?
Até quando, Brasil?
*Bernardo Pasqualette é advogado e autor do livro Me esqueçam - Figueiredo: a biografia de uma Presidência