Mariana Costa Silveira, Doutoranda em Administração Pública e Governo (FGV-EAESP) e Pesquisadora do NEB-FGV
Michelle Fernandez, Professora e pesquisadora no IPOL/UnB e Pesquisadora do NEB-FGV
Gabriela Spanghero Lotta, Professora da FGV-EAESP e Coordenadora do NEB-FGV
João Pedote, Mestrando em Administração Pública e Governo (FGV-EAESP) e Pesquisador do NEB-FGV
Iana Alves de Lima, Doutoranda em Administração Pública e Governo (FGV-EAESP) e Pesquisadora do NEB-FGV
Olívia Guaranha, Mestranda em Administração Pública e Governo (FGV-EAESP) e Pesquisadora do NEB-FGV
Ao longo dos últimos três anos, a democracia brasileira vem passando por processos de fragilização e retrocessos. Nesse período, o Governo Bolsonaro tem atuado para desmantelar a ação do Estado em diferentes áreas como é o caso do setor socioambiental e indigenista, educação, saúde, direitos humanos, assistência social, entre tantos outros setores. A diminuição ou fragilização da atuação do Estado e das políticas sociais debilita a própria democracia e o Estado de direito. E, como estratégia central para a concretização desse projeto de desmonte, a agenda política da coalizão governante de Bolsonaro tem apostado em estratégias opressoras de enfraquecimento e desmobilização do corpo de servidores públicos em diversas organizações.
Em contextos democráticos, o que se espera de uma organização governamental é que ela atue em consonância com sua missão constitucional e organizacional. Esse não é o caso da FUNAI durante o Governo Bolsonaro - como mostra o dossiê recentemente publicado pela INA (Indigenistas Associados) e pelo INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos), além das notas técnicas e resultados de diferentes pesquisas[1] sobre assédio institucional no Brasil, desde 2016.
Em estudo realizado por nossa equipe, que entrevistou 165 servidores federais - entre ele/as, servidores e servidoras da FUNAI - com o objetivo de entender a situação dos funcionários públicos no atual governo, temos identificado um fenômeno que também aparece estampado em reportagens nas mídias nacional e internacional e no próprio dossiê do INA/INESC: em lugar de atuar pela proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas, a FUNAI sob o Governo de Bolsonaro, e sob a direção de Marcelo Xavier, tem deliberadamente produzido ações e conteúdos de política pública anti-indigenistas e inconstitucionais.
É neste contexto em que se insere o trágico assassinato do indigenista da FUNAI Bruno Araújo Pereira e do jornalista Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian, em junho deste ano, e do colaborador da FUNAI Maxciel Pereira dos Santos em setembro de 2019 na região da Terra Indígena Vale do Javari. É também nesse ambiente político mais amplo, de ataque aos povos indígenas em diferentes regiões do Brasil, que se inserem os assassinatos de indígenas, lideranças comunitárias e ativistas atuantes na promoção dos direitos dos povos originários, como os casos recentes de ataque aos povos Guarani-Kaiowá (com o assassinato do indígena Vito Fernandes) e aos Yanomami, entre centenas de denúncias realizadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Como apontaram o cientista político Claudio Couto e o antropólogo Fernando Vianna no podcast "Bruno e Dom: a política que produziu o crime", a morte de Bruno e Dom não é um fenômeno pontual ou episódico. Ao contrário: são mortes produzidas por um ambiente político e por um governo que propaga não só discursos, mas também políticas estruturadas e sistemáticas de opressão aos povos indígenas e a todos aqueles que promovem os direitos desses povos, a começar pelo direito originário à terra.
A partir de entrevistas com servidores públicos, identificamos diversas ações anti-indigenistas promovidas pela FUNAI no governo Bolsonaro, tais como: (i) imposição de barreiras formais e informais à demarcação de terras indígenas, impondo retrocessos procedimentais e desmontes sobretudo no âmbito da Diretoria de Proteção Territorial, bloqueando e protelando ações em campo, prejudicando a atuação de grupos de trabalho e consolidando uma política antidemarcatória de forma sistemática na FUNAI; (ii) remoções à revelia de servidores atuantes em processos de identificação e demarcação de terras indígenas; (iii) inúmeros casos de assédio moral e institucional, que vão desde declarações difamatórias cotidianas, até processos administrativos (PADs) indevidos, perseguições a servidores, agressões físicas e morais; (iv) sucessivos desmontes de instituições de governança participativa; (v) promoção de ataques às comunidades indígenas; (vi) militarização da organização e despreparo técnico de chefias indicadas politicamente para trabalhar com povos indígenas em contextos de interculturalidade, sendo muitas das chefias alinhadas a uma agenda sistemática de perseguição aos povos indígenas, de incentivo à ocupação ilegal de territórios indígenas e do atendimento e priorização dos interesses ruralistas em terras indígenas; (vii) precarização e desmonte das condições e processos de trabalho dos servidores da FUNAI nos territórios, por meio do corte a diárias e passagens para trabalhos de campo, da centralização decisória prejudicando a autonomia das unidades da FUNAI para atuar na ponta (inviabilizando o trabalho em campo, inclusive ações emergenciais), do quadro de escassez de servidores para atuar em territórios tão extensos e complexos, da falta de equipamentos mínimos para a realização das atividades, da precarização dos procedimentos de trabalho; da dotação orçamentária insuficiente, da desvalorização e assédio permanente aos servidores, do impedimento para atuação do servidores em terras indígenas não homologadas, entre outros graves problemas instituídos na atual gestão.
Em estudos sobre o papel da burocracia e sua relação com as lideranças políticas em contextos democráticos, observamos várias formas de atuação dos políticos para controlar os servidores públicos e os efeitos dessas práticas. Políticos tentam assumir o controle da burocracia por meio de nomeações e exonerações, por exemplo. No contexto do bolsonarismo, porém, percebe-se uma mudança drástica nas estratégias adotadas pelo alto escalão do governo no exercício de seu controle político sobre os servidores públicos. Essas estratégias deixaram de funcionar dentro dos limites das regras e instituições democráticas. É nesse sentido que o controle político assume um caráter opressivo e começa a ter efeitos nefastos.
Ouvimos inúmeros relatos de servidores que foram removidos de projetos e processos nos quais estavam trabalhando para a demarcação de terras indígena, de servidores que foram coagidos e investigados, processados e perseguidos, ou ainda de servidores que adoeceram por não poderem exercer sua função de cumprir com os princípios da missão organizacional: a proteção e promoção dos direitos indígenas. Portanto, em vez de contarem com apoio institucional e esforços intersetoriais do Governo Federal para promover os direitos indígenas, os servidores estão, na verdade, sendo cotidianamente ameaçados por chefias políticas, organizações criminosas e grupos de interesse, apoiados pelo próprio discurso presidencial, que prometeu "dar uma foiçada no pescoço da FUNAI". São inúmeros os exemplos de quadros diretivos da FUNAI incentivando e viabilizando a invasão e o arrendamento de territórios indígenas, promovendo perseguições e aberturas de inquéritos policiais contra lideranças indígenas, ataques e violências às comunidades em várias regiões do Brasil.
As mortes cruéis de Bruno Araújo Pereira e Dom Phillips - e também de Vito Fernandes, de Maxciel Pereira e de tantos indígenas, lideranças, indigenistas e ativistas - não são fatos isolados. São marcos trágicos que se refletem nos territórios continuamente ameaçados, não apenas por parte de segmentos da sociedade ligados à exploração da terra, mas sobretudo por parte da opressão sistemática do governo operada pelos dirigentes da FUNAI em relação a seu quadro de servidores e às comunidades indígenas.
Apesar de todas as opressões governamentais, os servidores da FUNAI têm atuado como podem, no dia a dia da administração pública, no exercício das suas atividades técnicas, para proteger e promover os direitos originários dos povos indígenas. Mesmo sofrendo constantemente ameaças governamentais e correndo riscos à sua carreira (e muitas vezes às suas próprias vidas), os servidores têm feito inúmeros esforços contra os retrocessos nas políticas indigenistas, lutando em defesa da autonomia dos povos indígenas e de um estado pluriétnico e democrático.
Os assassinatos cruéis são a face extrema de um projeto sistemático de retrocesso em direitos que se estende a diversas áreas de política pública, mas que compromete de maneira mais pungente as minorias. É preciso reforçar os compromissos estabelecidos na Constituição de 1988 de defesa dos povos originários e desenvolvimento social como um todo. É urgente a instauração de novo programa de governo que respeite os pactos estabelecidos e a construção institucional democrática. E que se tenha consciência que, embora o projeto de desmonte possa ser interrompido, a reparação de danos nos custará muitos anos à frente.
Nota
[1] Conferir: https://afipeasindical.org.br/content/uploads/2022/05/Assedio-Institucional-no-Brasil-Afipea-Edupb.pdf
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