Rafael Rodrigues Viegas, Mestre em Ciência Política pela UFPR. Doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP
A definição sobre quem imunizar contra covid-19, em teoria se pautará por critérios técnicos, mas na prática pode sofrer interferência de outros fatores, entre os quais políticos, que se referem a relações de poder. A depender tanto integrantes dos Ministério Público de São Paulo, como do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, já sinalizaram que estão dispostos a furar qualquer fila.
Assim agindo, eles se colocam à frente de policiais, professores e, principalmente, profissionais da área de saúde que estão na linha de frente de combate à covid-19 desde o primeiro dia. Mas, por que isso não surpreende?
O orçamento do Judiciário e do Ministério Público, entre 2003 e 2016, por exemplo, sofreu um aporte considerável e sem precedentes, em comparação com o crescimento do produto interno bruto (PIB) do Brasil. A verdade é que não há crise econômica, como foi a de 2008, ou crise política, como a atual, que abale os seus vencimentos, pois são irredutíveis por expressa previsão constitucional. No mesmo sentido, assim que se tornam vitalícios somente perderão o cargo por iniciativa deles mesmos, por sentença condenatória transitada em julgado.
Evidente que a autonomia dessas instituições e as garantias e prerrogativas, como irredutibilidade de vencimentos e vitaliciamento, são necessárias para o exercício independente de suas nobres funções. O problema é quando se voltam para satisfazer interesses pessoais de seus membros.
O que se quer dizer com tudo isso, objetivamente, é que o Brasil poderá estar em ruínas, mas essas instituições e seus integrantes estarão de pé, como pilares do Estado. Porém, é importante que se diga que não produzem bens materiais da vida. Não geram e não fazem circular riqueza, a não ser com suas canetadas, que ainda sofrem pouco ou nenhum controle formal externo, como exigência normativa para o funcionamento adequado de uma democracia.
E não faltam exemplos sobre o tipo de relação que estabelecem com o Estado, como nos seguidos anos em que foi pago auxílio moradia indiscriminadamente para integrantes do Judiciário e do Ministério Público, fazendo dessa prática uma espécie de aumento de vencimentos sem previsão legal, portanto, sem aval dos legítimos representantes do povo soberano, que estão no Poder Legislativo e no Executivo.
Ademais, cita-se também a venda de férias acumuladas em seguidos anos (são duas férias de 30 dias por ano, além dos recessos), que recebem a rubrica de verba indenizatória, mas funcionam como se fossem ativos da bolsa de valores. Em relação a esse ponto sobre indenizações que reconhecem a si mesmos, aqui e ali aparecem notícias de contracheques de 200 e até 500 mil reais no mês de dezembro, no Judiciário e no Ministério Público, como se desembargadores, juízes, promotores de justiça e procuradores da República fossem chiefs executives officers (CEOs) de multinacionais.
Não por menos, há quem diga que se trata de um mundo paralelo, alheio aos mais de 50 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e em que boa parte da iniciativa privada sofre para fechar as contas no final de todo mês. Sobretudo, não se trata de algo indiferente ao funcionamento do Estado, esse tipo de registro que se coloca em discussão é típico de estamentos.
E haveria muitos outros exemplos, que não cabem aqui. A questão central é que não se tem conhecimento de algo semelhante no mundo democrático contemporâneo, em termos de capacidade que um ramo da burocracia tem de se apropriar de uma parte do Estado e reproduzir-se, com pouco ou nenhum controle formal externo, tão descolado da realidade social do próprio país.
Embora se tenha o cuidado de não generalizar, é preciso estar atento para um detalhe. A iniciativa de furar a fila da vacina parte de alguns poucos sob alegação de que se trata de um interesse público, mas o resultado beneficiará a todos os seus integrantes. Por isso, chama atenção o silêncio dos demais. Além disso, uma vez que esse tipo de iniciativa parte da cúpula do Judiciário, estará justificado para os demais Tribunais e Ministérios Públicos, da União e dos Estados, ou seja, terá um efeito em cascata.
Sendo irônico, não foi emitida uma nota sequer pelas associações de classe, tentando negar ou rechaçar essa iniciativa vergonhosa. Associações estas que defendem os interesses corporativos de membros do Judiciário e do Ministério Público, as mesmas que se arvoram na luta contra a corrupção como se fosse a única mazela do Brasil.
Detalhe também é que se tem notícia de que os integrantes dessas instituições judiciárias, incluindo os seus servidores, no geral estão realizando trabalho remoto, ou seja, home office, sem risco para as suas integridades e de suas famílias. Já aqueles que estão expostos e realizando atendimento ao público nessas instituições, uma minoria, estes poderiam entrar na primeira fila.
Ainda assim seria preciso identificá-los e demonstrar o trabalho que realizam, pois "Se os homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos", disse o sábio James Madison, em O Federalista, n. 51. A cautela é necessária, porquanto se está tratando de uma parte da burocracia de Estado que faz jus ao "farinha pouca, meu pirão primeiro", diria Bezerra da Silva.
Em uma situação como a pandemia de covid-19, com escassez de recursos e a luta contra um vírus mortal, o que justifica integrantes do Judiciário e do Ministério Público, ressalta-se, em home office, serem vacinados antes dos servidores da linha de frente, antes de pessoas vulneráveis dos grupos de risco, indígenas e a população mais carente do Brasil? Nada.
Entrementes, nada também justifica diversas prebendas que recebem do Estado, em troca de um serviço público de qualidade questionável, um dos sistemas de justiça mais caros do mundo, diga-se de passagem, ainda lento e pouco accountable, que não raro se volta contra o sacrificado povo que o sustenta. O mesmo povo que pode ser preterido na vacina para salvar aqueles que se relacionam com o Estado como se parte deste fosse deles por direito.
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