Patricia Maria E. Mendonça - doutora em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP. Professora do bacharelado e mestrado em Gestão de Políticas Públicas da EACH/ USP.
Paula Chies Schommer - doutora em administração de empresas pela FGV EAESP. Professora de administração pública na Universidade do Estado de Santa Catarina, Udesc Esag.
As mudanças no dia a dia das pessoas frente à pandemia de Covid-19 são muitas. Trabalhar, cuidar da família e dos vizinhos e apoiar a educação dos filhos, tudo ao mesmo tempo e no mesmo lugar, passou a ser parte da rotina de muita gente, sobretudo das mulheres. Transitar nas ruas, entrar em algum estabelecimento ou divulgar e receber informações sobre prevenção em saúde ou sobre um produto, tudo isso passou por mudanças rápidas, exigindo aprendizagem e inovações.
Em países como a Coreia do Sul e Singapura, os cidadãos utilizam aplicativos em smart phones para monitorar sintomas e permitir acompanhamento de casos leves de Covid-19. Em alguns municípios brasileiros, já há algumas experiências similares, como em Jaraguá do Sul- SC1. Isso auxilia o isolamento e evita deslocamentos desnecessários. Na Alemanha, em processo de reabertura, clientes de restaurantes estão deixando seus contatos voluntariamente caso precisem ser rastreados pelos profissionais de saúde.Na educação, estudantes e suas famílias estão tendo um papel ainda mais ativo, em interação com os professores, nas experiências de ensino não-presencial.
A UNESCO2 estima que cerca de 1,2 bilhões de crianças estão sem frequentar a escola nesse período, o que tende a gerar impacto no médio e longo prazo na forma como a educação é feita. Professores estão trabalhando muito, tendo que inovar em diversos aspectos. Muitos deles relatam que a colaboração com estudantes e suas famílias gera subsídios para a aprendizagem de todos os envolvidos.
Sem abdicar da relevância dos profissionais e das interações entre os estudantes, o contato mais próximo entre famílias, coordenadores pedagógicos e professores tem ajudado a ajustar forma e conteúdo de aulas não presenciais. Iniciativas de mães tem criado conteúdos com orientações pedagógicas, roteiros de brincadeiras, compartilhamento de livros e outros recursos online. Estas experiências poderão no futuro ajudar na integração entre tecnologia e educação e no aprimoramento dos métodos de ensino.
Populações vulneráveis se envolvem no enfrentamento da pandemia, difundindo informações qualificadas, seja na periferia de uma grande cidade ou em um pequeno município do interior. A partir dessas experiências, pode-se identificar soluções capazes de lidar com barreiras estruturais. É o que tem ocorrido em diversas iniciativas identificadas com a #covid19nasfavelas, que vão desde mobilizar doações e distribui-las sem gerar aglomerações, até fazer a informação chegar por meio de carros de som, com música funk e rap, e faixas e cartazes em associações de moradores, estabelecimentos comerciais e templos religiosos. Tudo sob a orientação de profissionais de saúde3.
Esses tipos de ação se tornaram mais evidentes agora, mas sempre ocorreram em maior ou menor grau, pois saúde, educação e segurança são tipos de serviços que sempre envolvem o cidadão-usuário e a comunidade de algum modo, em alguma etapa do processo. Esse engajamento de usuários-cidadãos, junto aos profissionais, no desenho e na entrega dos serviços públicos pode ser definido como coprodução.
Na década de 1970, a cientista política Elinor Ostrom, primeira mulher a ser agraciada com o Prêmio Nobel de Economia, juntamente com seu grupo de pesquisa da Universidade de Indiana nos Estados Unidos, já destacava o papel dos cidadãos e a colaboração entre diferentes organizações nos serviços públicos, definindo o conceito de coprodução. A coprodução expressa uma ideia simples, a do engajamento mútuo e ativo entre profissionais e usuários na realização dos serviços públicos. A atuação conjunta gera sinergia, permitindo resultados que não seriam alcançados se cada uma das partes atuasse isoladamente4.
Em diversos países, vem sendo experimentadas inúmeras maneiras e arranjos para envolver mais e melhor os usuários de serviços públicos, junto com os profissionais responsáveis por sua provisão. A coprodução pode acontecer no momento da entrega do serviço ou na etapa em que o serviço é desenhado. No design, os usuários podem planejar ou modificar junto com os agentes públicos os conteúdos e processos, avaliar a qualidade e inclusive propor a oferta de novos bens e serviços. Na entrega, cumprem papel relevante, por exemplo, na prevenção e no tratamento de saúde, ou no compartilhamento de informações para prevenção e denúncia de crimes de corrupção ou ofensa sexual, ou no policiamento comunitário, na área de segurança pública5.
No setor privado isso também ocorre. Por exemplo, os consumidores são envolvidos no design e no teste de protótipos de um produto ou serviço, ou participam de alguma etapa da produção, como em uma viagem aérea, em que os passageiros realizam a compra, marcam os assentos, solicitam serviços extras e despacham a própria bagagem no aeroporto.
A coprodução na área pública pressupõe a participação cidadã na gestão pública, de um modo particular, pois as interações entre cidadãos e agentes públicos geram resultados concretos, na forma de bens ou serviços. A coprodução tenta conciliar duas abordagens de administração pública: a chamada Nova Gestão Pública, que enfatiza a capacidade de resposta às demandas dos cidadãos por meio da eficiência e da provisão de serviços não apenas pelo Estado, e a Democracia Participativa, que advoga que canais de interação adicionais ao da representação formal devem ser estabelecidos para comportar interesses mais plurais e promover equidade no acesso aos bens e serviços públicos.
Coproduzir significa usar voz, mentes e mãos de cidadãos e servidores, construindo instrumentos concretos para a ação e reconhecendo o que os cidadãos-usuários já fazem e agrega valor aos serviços. Ao mesmo tempo, promove inovações que contribuem com a efetividade dos serviços públicos. Para além de serem ouvidos, os cidadãos-usuários possuem conhecimentos e ideias que só quem vive uma necessidade ou usa um serviço é capaz de ter. O engajamento mútuo entre usuários-cidadãos e profissionais do setor público pode mobilizar recursos e gerar sinergias. Levar a uma solução a que não se chegaria, se cada um atuasse isolado. Isso serve tanto para itens simples do dia-a-dia, como pode ajudar a resolver problemas complexos da sociedade.
Além dos exemplos já citados nas áreas de saúde, educação e segurança pública, nas quais estão a maior parte dos estudos sobre coprodução, destaca-se o meio ambiente. No semiárido brasileiro, há modelos de coprodução que combinam infraestrutura centralizada de empresa de saneamento, açudes, represas e canais com soluções comunitárias, como poços e cisternas. Em cidades médias e grandes, há modelos de esgotamento condominial, nos quais os moradores desempenham papel relevante no desenho e na oferta do serviço. A coprodução na área de água, energia e gestão de resíduos mostra bom potencial para expandir a consciência dos usuários acerca da capacidade de recursos naturais6.
Na saúde, são inúmeras as formas de se coproduzir. É possível adequar individualmente opções, como é feito no plano de partos humanizados. O envolvimento individual pode adicionar conhecimento, como é o caso dos chamados 'pacientes experts', que possuem condições como diabetes, HIV, doença renal crônica, entre outros. Eles têm ajudado em serviços de saúde em diferentes momentos, desde reformular protocolos e atendimentos de autocuidado, até definir, em conjunto com corpos técnicos, opções de tratamentos, considerando tanto ganhos clínicos como opções orçamentárias. Alguns destes modelos de atendimento na saúde podem ser de grande impacto para o controle da pandemia de COVID-19 no curto e médio prazo7.
Na educação, especialmente na educação infantil e ensino fundamental, os coprodutores não são apenas aqueles que recebem o serviço diretamente. A família, o próprio estudante, seus amigos e colegas de classe são elementos centrais para que o processo educativo aconteça. Não há educação sem recursos e profissionais qualificados, mas também não há educação sem o educando e o seu entorno. Estas múltiplas relações contribuem para a qualidade da educação e a legitimidade da escola, quando familiares e outros membros da comunidade escolar participam de instâncias decisórias, como conselhos escolares. Há, ainda, coprodução em atividades complementares da escola, como atividades extracurriculares, hortas e merenda escolar e produção de material de apoio didático.
Há um claro potencial da coprodução para dar mais poder aos cidadãos, trazendo-os mais próximos dos serviços, alinhando-os aos seus interesses e expectativas. Isso requer mais flexibilidade das regras e processos na gestão pública e mais abertura dos governos e profissionais para experimentar, aprender e compartilhar conhecimentos e decisões. Cabe à administração pública criar e expandir incentivos para que o alinhamento entre as organizações públicas e os cidadãos aconteça. Aos cidadãos, cabe uma atitude proativa em relação aos serviços e ao coletivo, atuando também como "proprietários" dos bens públicos. Algo que pode ser exigente, nem sempre viável e não pode ser imposto aos cidadãos.
Por fim, para que o potencial da ação coletiva seja realizado, a confiança entre cidadãos e servidores públicos é ingrediente fundamental. A coprodução vem também com necessidade de flexibilidade e corresponsabilização, o que pode ser muito difícil para os atuais sistemas de acompanhamento e controle da gestão pública. Há, ainda, riscos associados ao aumento dos custos dos serviços e ampliação das desigualdades, pois nem todos os cidadãos-usuários terão o mesmo nível de disponibilidade, recursos e interesse para coproduzir.
Nesse período de tantas mudanças em função da pandemia, muitas lições podem ser aprendidas ao redor do mundo sobre a coprodução para melhoria e efetividade dos serviços públicos. Diversas soluções para problemas coletivos estão sendo visibilizadas ou criadas a partir do envolvimento dos cidadãos-usuários. São conhecimentos e ferramentas importantes para lidar com necessidades desse momento, que podem vir a ser incorporadas em políticas públicas no longo prazo.
1 Jaraguá do Sul. (2020). Você já baixou o aplicativo Covid Monitor? 05 maio 2020. Disponível em https://www.jaraguadosul.sc.gov.br/news/voc-j-baixou-o-aplicativo-covid-monitor
2 UNESCO. (2020). Education: from disruption to recovery. Disponível em: https://en.unesco.org/covid19/educationresponse
3 Fenizola, Luiza. 92020). Soluções que vem das favelas: como moradores estão agindo e cobrando diante da pandemia. Rio on watch. Disponível em: https://rioonwatch.org.br/?p=45925
4 Ostrom, E. (1996). Crossing the Great Divide: Co-Production, Synergy, and Development. World Development, (24, 6), 1073-1087.
5 Taco, Trui ; Bram (eds). (2018) Co-Production and Co-Creation: Engaging Citizens in Public Services. New York: Routledge.
6 Moretto, L. and Ranzato, M. (2017). A Socio-Natural Standpoint to Understand Coproduction of Water, Energy and Waste Services. Urban Research & Practice, (10), 1-21.
7 Marston, Cicely et al. (2020). Community participation is crucial in a pandemic. The Lancet., Published: May 04, 2020, DOI: https://doi.org/10.1016/S-0140-6736(20)31054-0
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