Benedito Mariano. Sociólogo, Mestre em Ciências Sociais (PUC-SP). É coordenador do Núcleo de Segurança Pública na Democracia do IREE e Secretário de Segurança Cidadã de Diadema. Foi Ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo. Membro Associado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Autor do livro "Por Um Novo Modelo de Policia no Brasil", editora Perseu Abramo
Desde o processo de democratização do país, que tem como marcos as eleições de 1982 e a Constituição de 1988, nunca tivemos um governo federal tão obscurantista e fascista.
A eleição de Bolsonaro foi a negação do estado democrático de direito e dos partidos políticos. Seu governo destruiu inúmeras conquistas do período da transição democrática, obtidas com o fim da Ditadura Militar através de um amplo processo de luta e mobilização política e social. O retrocesso promovido pelo atual presidente é evidente e inquestionável. Seus vários movimentos golpistas, sua simpatia com as práticas de milicianos, seu populismo do ódio, seu desrespeito às instituições republicanas, seu descaso com os pobres, indígenas, mulheres, população LGBTQIA+ e demais grupos minorizados, sua visão beligerante da segurança pública, com narrativas e práticas que procuram valorizar o anacronismo e autoritarismo que marca este setor do estado brasileiro e sua política externa de apoio à governos de extrema direita, envergonhando o país na comunidade internacional, tornaram seu governo uma referência mundial de desprezo à democracia.
Tais condutas somaram-se, ainda, a uma postura negacionista frente a pandemia de Covid-19, com demora para compra de imunizantes e para aprovação do início da vacinação infantil, defesa do uso de medicamentos sem eficácia comprovada para o combate à doença, e descaso frente às inúmeras perdas de vidas ocorridas durante esse período. Com tal comportamento, que ao invés de induzir uma resposta coordenada e articulada à pandemia apenas dificultou os esforços destinados a combatê-la, o Governo contribuiu para a morte de mais de 620 mil brasileiros e brasileiras que perderam a vida em decorrência da Covid-19.
O bolsonarismo surgiu a partir de uma das maiores crises políticas do Brasil, valendo-se de uma campanha de ódio contra a esquerda e o campo democrático. A crise econômica, o engodo da luta contra a corrupção patrocinada pela lava jato, que quebrou grande parte das indústrias brasileiras, o discurso moralista reacionário de defesa da família, somado ao apoio de amplos setores da mídia, levaram ao impeachment de uma Presidente da República que não cometeu crime nenhum e à prisão do ex-presidente Lula, impedindo que ele disputasse as eleições de 2018. Tais processos foram fundamentalmente marcados pelo desrespeito ao devido processo legal. Parte dessas irregularidades já começam, inclusive, a vir à tona, como demonstrou no ano passado o Supremo Tribunal Federal - STF ao decidir que o juiz que proferiu as condenações contra Lula era suspeito, anulando todos os processos.
Lula não cometeu crime nenhum e seu algoz viraria ministro da Justiça após a eleição de Bolsonaro.
O ex-juiz federal, junto com Bolsonaro, enviaram ao Congresso Nacional, no seu "Pacote Anticrime", a proposta de ampliar a excludente de ilicitude, que na prática daria carta branca para a polícia matar, em um país em que a letalidade policial contra pobres e negros é uma marca do sistema de segurança pública. Felizmente o Congresso Nacional rejeitou tal proposta absurda. É vergonhoso que um ex-juiz federal tenha encaminhado ao Parlamento uma das maiores aberrações jurídicas já vista na República.
É neste contexto de reconstrução da democracia e dos valores republicanos que teremos eleições este ano. O povo brasileiro percebeu a farsa em que caiu, e as pesquisas de intenção de voto para Presidente da República, que colocam o ex-presidente Lula com larga vantagem na disputa, são o maior indicativo disso.
Mas, provavelmente, esta será uma das eleições mais difíceis das últimas décadas. O que está em jogo não são apenas as diferenças ideológicas e partidárias. É a reconstrução do país. E a reconstrução do que foi destruído passa necessariamente pela construção de um pacto em defesa da democracia, que, para se viabilizar, deve incluir a esquerda, amplos setores do campo democrático e, também, a centro direita não fascista, de forma que possamos estabelecer novas formas de convivência e uma base de apoio no Congresso Nacional e na sociedade brasileira.
A possibilidade de termos este ano a chapa Lula Presidente e Alckmin vice-presidente preenche este cenário de reconstrução e fortalecimento da democracia.
Minha principal divergência em relação ao ex-governador Alckmin está em relação a sua visão de segurança pública. Não acredito, porém, que este setor ficará a seu cargo. Vale registrar, ainda, que a divergência existente não impediu que por duas vezes o ex-governador tenha me nomeado para Ouvidor da Polícia do estado de São Paulo e tenha respaldado todas as ações da Ouvidoria da Polícia, assim como fizera Mario Covas.
Por outro lado, a chapa Lula e Alckmin abre a possibilidade de Fernando Haddad disputar para ganhar a eleição para o governo do Estado de São Paulo, após quase três décadas de governos do PSDB.
Temos que ser coerentes nas narrativas e nas práticas políticas. A violência policial letal contra a população negra em governos administrados pelo PT (Bahia e Ceará) pelo campo democrático como Pernambuco (PSB), por exemplo, é maior, proporcionalmente, que a registrada nos governos de ex-governador Alckmin. Isso não significa dizer que as taxas de letalidade policial em São Paulo nos seus governos não fossem altíssimas, e uma questão fundamental a ser enfrentada. Mas, significa que mesmo nos governos estaduais da esquerda e do campo democrático não foi criado nada de novo para diminuir o preconceito histórica das polícias contra pobres e negros, que são as principais vítimas da violência policial letal.
O grande legado que temos na segurança pública foi de iniciativa do governo federal, com a criação do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania - PRONASCI, no governo Lula, sob a liderança do ex-ministro Tarso Genro. Trata-se do único programa federal que incluiu os municípios e a prevenção na lógica da segurança pública, apesar de não ter avançado em reformas constitucionais, e não ter induzido reformas infraconstitucionais nos Estados e no Distrito Federal.
Vou continuar defendendo a necessidade de termos no Brasil uma Polícia Democrática, Cidadã e Antirracista. Esta nova polícia será resultado de um amplo debate democrático e plural, envolvendo gestores, acadêmicos, empresários, o Congresso Nacional, profissionais da segurança pública e amplos setores da sociedade civil. A eleição da futura chapa Lula e Alckmin, que é uma resposta democrática e plural para vencermos o obscurantismo e o fascismo, não é um entrave a esse processo.
Ou a esquerda e o campo democrático tem a capacidade de dialogar e pactuar programaticamente com a centro direita, ou continuaremos sendo refém do fisiologismo que marca grande parte das relações políticas no Brasil.