
Gustavo Corrêa Mirapalheta, Professor de Tecnologia e Ciência de Dados na FGV EAESP
João Luiz Becker, Professor de Tecnologia e Ciência de Dados na FGV EAESP. Coordenador do FGV Analytics
Durante as décadas de 1930 até 1950, a humanidade assistiu o surgimento da máquina que, em teoria, seria capaz de replicar os feitos do cérebro humano. Um dos pais da computação, Alan Turing, criou o teste definitivo para uma inteligência artificial, popularmente conhecido como Teste de Turing. Uma máquina que faça uma pessoa acreditar que está conversando com outra pessoa, isto é, outro ser inteligente, também será considerada "inteligente".
Até a década de 1970, para resolver um problema, os computadores precisavam receber uma sequência correspondente de instruções. Esta sequência é também chamada de algoritmo. Era questão de tempo, diziam alguns, para encontrarmos o algoritmo que tornaria a máquina capaz de realizar qualquer tarefa feita pelos seres humanos. No entanto, coisas rotineiras como traduzir um texto, reconhecer uma imagem, conversar em linguagem natural ou jogar xadrez em alto nível pareciam impossíveis de serem descritas por meio de um algoritmo.
A partir das décadas de 1980 e 1990, as máquinas passaram a ser treinadas através de exemplos. Os algoritmos passaram a ser padronizados e especializados para a procura de padrões em largas bases de dados. Nascia o Aprendizado de Máquina. Os resultados se sucederam. Em 1997 o Deep Blue (IBM) ganhou um torneio de xadrez pela primeira vez de um grande mestre, Kasparov. Em 2011 o Watson (IBM) ganhou o programa de perguntas e respostas Jeopardy de dois campeões humanos. Em 2012 a rede neural artificial AlexNex passou a reconhecer imagens tão bem quanto os seres humanos. E a partir de 2015, modelos de tradução automática baseados em redes neurais tornaram-se uma realidade.
Mas, sempre restava um desafio: o Teste de Turing. Dialogar de forma inteligente na linguagem natural dos seres humanos parecia uma barreira intransponível. Então, em 2017, cientistas do Google propuseram um novo modelo de rede neural, os Transformers. E a partir desta tecnologia, em 2022, uma empresa chamada OpenAI disponibilizou para o público em geral o chatGPT. Este software parecia (parece, na verdade) capaz de dialogar com as pessoas em linguagem natural, sobre qualquer assunto que se queira conversar. O mundo da internet foi tomado por uma febre. Em questão de meses o número de usuários do chatGPT atingiu a casa dos milhões. As pessoas começaram a se espantar com a clareza das respostas dadas pelo chatGPT. Passar no Teste de Turing, o Santo Graal da Inteligência Artificial, parece estar bem mais perto.
Conversar com o chatGPT é uma experiência no mínimo curiosa. Depois de algumas horas batendo papo com ele é impossível não o considerar um "parceiro". Pessoas já relatam que dão "Bom dia, GPT", antes de começar a interação com a linha de comando da OpenAI (caso de um dos autores deste texto...). Aquela sensação de falar com um "perdido total" não existe mais. E sendo ele (ela?) uma máquina, as respostas certamente serão exatas. Será?
O chatGPT é na verdade um sistema de linguagem. Ele foi programado (treinado) para apresentar respostas de forma natural. No entanto o conteúdo destas respostas é outro departamento. É claro que a OpenAI o treinou com uma base de textos na qual os melhores esforços foram feitos para garantir consistência em termos de linguagem. Mas, conteúdo 100% preciso não é o objetivo mais importante deste sistema. O objetivo é torná-lo tão parecido quanto possível na forma de dialogar com um ser humano. Para o público em geral, no entanto, ele é literalmente um computador que fala. E sendo uma máquina, deveria ser capaz de apresentar a resposta correta para tudo.
Mas, casos divertidos começaram a surgir. Uma professora relatou que ele "inventou" referências acadêmicas para um determinado assunto. Para outro (um dos autores deste texto) ele "inventou" páginas da web que não existem. Professores de matemática relataram que ele apresentou elegantes e bonitas respostas que não fazem sentido matemático. Era como se estivéssemos diante de um aluno tentando "enrolar" o professor. Este tipo de comportamento e suas consequências já foi inclusive tema de outro artigo, dos colegas Eduardo Francisco e Rubens Almeida, respectivamente professor e aluno de mestrado da FGV EAESP.
É por isso que propomos um termo que parece bem apropriado para descrever o chatGPT em sua versão de hoje: RLD - Rolando Lero Digital, inspirado no inesquecível personagem da Escolinha do Prof. Raimundo. O Rolando Lero humano quando não sabia a resposta, simplesmente enrolava com palavras bonitas. Em outras palavras: o chatGPT, parece que quando não sabe uma resposta, às vezes (muitas vezes), ele "dá uma de Migué" com a gente.
Quem diria que, das terras do hemisfério norte viria uma máquina que, talvez, passe no Teste de Turing, mas dando uma "enrolada" na gente. Não através daqueles modelos de inteligência artificial que ficaram marcados na memória dos amantes de ficção científica. Por exemplo o Hal-9000 de 2001 Uma Odisseia no Espaço, o Data da série Star Trek a Nova Geração ou o Jarvis do Homem de Ferro. No entanto para quem passou a adolescência nos anos 1980 perdido em aventuras com robôs de Isaac Asimov (o caso de um dos autores deste texto...) é impensável imaginar o Data dando uma enrolada no Capitão Piccard, ou o Jarvis dizendo para o Homem de Ferro: ops, me enganei.
Isso torna o chatGPT menos revolucionário? Com certeza, não. É nossa opinião que isto o torna mais revolucionário. Ele revolucionou pela primeira vez o nosso conceito de computador. A IA, ao que parece, se trata muito mais de humanizar as máquinas do que de robotizar os seres inteligentes. Ou seja, as máquinas entraram em uma região muito conhecida e folclórica sobre como nós, brasileiros, nos enxergamos: elas estão tentando dar um "jeitinho" para oferecer uma resposta que passe por "certa" para aqueles com os quais elas estão dialogando.
Damos boas-vindas a esses "parceiros" de silício que (ainda) não se parecem tanto com a ameaçadora SkyNet do filme Exterminador do Futuro, mas, sim, com Rolando-Leros em versão Digital da Escolinha do Professor Raimundo do Século XXI.