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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Para entender a tragédia dos Yanomamis, siga os coturnos

Por REDAÇÃO
Atualização:
 Foto: Estadão

Leonardo Barros Soares, Mestre e Doutor em ciência política pela UFMG. Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFV e colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Coordenador do grupo de pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas (POPIAM) e da ABCP Indígena. E-mail: leonardo.b.soares@ufv.br

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Gabriela Azevedo Borges, Graduanda em Ciências Sociais da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: gabriela.a.borges@ufv.br

 No cenário de terra arrasada deixado pela administração Bolsonaro no que se refere à política indigenista, a Terra Indígena Yanomami (TIY) se destaca como um dos mais atingidos dentre os territórios indígenas do país. Devido à omissão do Governo Federal, desde 2019, florestas devastadas, rios poluídos pelo mercúrio, doenças e desassistência influenciam as estatísticas de desnutrição e mortalidade entre os Yanomami. De acordo com dados da Fiocruz, em 2021, 52% das crianças da TIY estavam abaixo do peso, além de a malária ser a maior causa da mortalidade infantil nas aldeias.

A expressão "siga o dinheiro" (follow the money) se popularizou na década de 1970 durante o escândalo de Watergate para expressar uma ideia simples: rastreando a origem do financiamento, chegaremos ao mandante de um crime. Para começarmos a apurar as responsabilidades pela imensa tragédia que ora se abate sobre o povo Yanomami - cujas imagens chocam qualquer um que já não tenha morrido por dentro -  propomos uma variação da famosa exortação: siga os coturnos!

Se não, vejamos. As invasões à TIY se iniciaram ao longo dos anos 1970, sobretudo como resposta ao estímulo desenvolvimentista emitido pelos militares durante a construção da estrada Perimetral Norte. A partir de 1975, a propaganda de jazidas minerais na região desencadeou uma "corrida do ouro" agravada a partir de 1987, com a invasão de garimpeiros em número cinco vezes maior do que a população Yanomami. Somente em 1992, com a homologação da TIY feita por Fernando Collor - no contexto de uma disputa de bastidores com os militares que, ao fim e ao cabo, contribuiu para sua queda - é que o índice de violência e de exploração do território diminuiu.

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E qual foi o deputado que decidiu encampar um projeto para anular a demarcação da TIY? Sim, ele mesmo, um antigo usuário de coturnos e inimigo figadal dos povos indígenas brasileiros, Jair Bolsonaro. Antiindígena avant la lettre, ele ecoava em suas manifestações públicas os mesmos "argumentos" do coronel Carlos Alberto Menna Barreto posteriormente codificados em seu livro "A farsa Yanomami", publicado pela editora da biblioteca do exército em 1995. Você já os conhece: a demarcação da TIY seria um absurdo pela extensão desnecessária e seria fruto de um complô internacional de ONGs internacionais e governos estrangeiros para subtrair ao Estado brasileiro um imenso naco de terra com muitos e valiosos recursos minerais. Além disso, serviria como cabeça de ponte para uma suposta internacionalização da Amazônia, o que tornaria os Yanomami, nada mais, nada menos, traidores mortais da pátria. A leitura do texto demonstra que a verdade inconveniente é cristalina e é uma só: os militares jamais engoliram a demarcação da maior terra indígena do país.

Eleito presidente da república, Bolsonaro continuou sua cruzada antiindígena: duplicou o número de militares em cargos civis do governo. Homens brancos, com características pouco singulares (militares e conservadores) tomaram conta da FUNAI, órgão federal responsável pela assistência aos povos indígenas. Ao proibir a Fiocruz de levar assistência aos povos Yanomami em novembro do ano passado, o órgão selou o projeto político-ideológico prometido pelo ex-presidente. Assim, abandono e descaso para com os povos originários do país são elementos intrínsecos da ideologia abraçada por muitos políticos que arrogam para si o epíteto de "patriotas".

Não esqueçamos, também, de quem esteve à frente do Ministério da Saúde durante a pandemia de Covid-19. Sim, o infame General Pazuello, em dobradinha com outro usuário de coturno carinhosamente apelidado pelo historiador Marco Antônio Villa de "o quasímodo do Gabinete de Segurança Institucional", é responsável direto pela morte de milhares de indígenas, seja pela má vontade na instalação de barreiras sanitárias em terras indígenas, seja pela morosidade na aquisição de vacinas ou pela distribuição do famigerado "kit covid" nas aldeias. A agudização da degradação das condições de vida dos Yanomami também tem suas raízes na catastrófica gestão sanitária de graduados agentes verde-oliva.

Desde 1992, a área demarcada por Collor é o símbolo da tensão não resolvida entre o pacto constitucional democrático e as forças armadas brasileiras, com especial destaque para o exército. Por isso mesmo, a visita de Lula a Roraima, no último sábado (21), tem um duplo significado de extrema importância: por um lado, de modo explícito, o presidente da república leva o Estado brasileiro à tentativa de estabelecer, desde o início de seu terceiro mandato, uma nova relação com os povos indígenas do país; por outro lado, nas entrelinhas, Lula manda um consistente sinal aos militares de que "o governo mudou" e, portanto, não há mais espaço para questionamentos sobre a integridade da TIY.

Os povos indígenas brasileiros têm uma longa história de contato com agentes militares desde os primórdios do Brasil colônia até nossos dias. Esperamos que a comoção causada pela situação dos Yanomami possa servir para pôr um fim aos séculos de abuso, violência e descaso com que frequentemente foram tratados por quem deveria protegê-los, e que os coturnos certos sejam imediatamente responsabilizados.

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