O governo de Jair Bolsonaro colocou como meta para os primeiros 100 dias de gestão editar uma medida provisória para regulamentar a educação domiciliar de crianças em idade escolar, o "homeschooling". No fim do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu a prática da modalidade no País até que seja regulamentada pela Congresso Nacional, após debate com a sociedade.
A meta não está ligada ao Ministério da Educação (MEC), mas ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sob o comando de Damares Alves. Segundo o texto, a medida iria beneficiar 31 mil famílias que se utilizam desse modo de aprendizagem.
Há mais de cinco anos, a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) defende a legalização e regulamentação da modalidade no País. Eles sugerem que sejam estabelecidas regras para o acompanhamento de órgãos públicos das crianças que são educadas em casa. Em 2017, a associação fez uma pesquisa e identificou que 3,2 mil famílias no País já aderiram ao modelo, atendendo cerca de 6 mil crianças.
Em setembro, o julgamento do tema dividiu os ministros do Supremo, que decidiram por vetar a prática em todo o País. O entendimento final foi de que a modalidade precisa ser aprovada pelo Legislativo para que sejam estabelecidas formas de execução e fiscalização, além de estabelecer requisitos de frequência, avaliação pedagógica e de socialização.
Parte do Supremo se posicionou pela inconstitucionalidade direta do homeschooling - foi defendida pelos ministros Luiz Fux e Ricardo Lewandowski. A educação de menores de idade é regulada pela Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pela Lei de Diretrizes e Bases Educacionais (LDB), além do Código Penal. Hoje, se os pais não matricularem uma criança com mais de 4 anos de idade em uma instituição de ensino, a atitude pode ser considerada crime de abandono intelectual - que tem como pena a detenção de 15 dias a um mês ou multa e podem responder processo por descumprimento das obrigações de cuidado e zelo do menor.
Discussão
Especialista em Direito Público pela Universidade de São Paulo (USP), Saulo Stefanone Alle, diz que a decisão do Supremo estabelece que, para a liberação do homeschooling, é preciso a aprovação de uma legislação específica. "É importante compreender que esse é um tipo de decisão que depende de um extenso debate, envolvendo especialistas em educação. É um debate que evoca a compreensão da nossa organização como sociedade, da função da escola e da educação. É muito mais do que simplesmente dizer se a modalidade é permitida ou não pela Constituição", diz.
À época do julgamento no STF, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais (CNPG) emitiu nota técnica em que defendia a "inexistência de prerrogativa constitucional dos pais em optar pela exclusão dos filhos da ambiência escolar" e diz que a modalidade "inviabilizaria o processo de inclusão social do estudante, a partir da percepção e do aprendizado que se produz com as diferenças, refugindo ao objetivo da educação nacional brasileira de responsabilidade conjunta da família e do Estado na formação cidadã dos indivíduos".
A socialização das crianças e jovens e a qualidade do ensino que pode ser proporcionado no ensino domiciliar são as duas principais preocupações de especialistas em educação em relação ao tema. Silvia Colello, especialista em Psicologia da Educação pela USP, afirma que a prática não garante as mesmas oportunidades de convivência e desenvolvimento que os espaços escolares. "Por mais geniais e bem formados que sejam esses pais como mentores, é difícil garantir que eles tenham competência para ensinar as diferentes áreas do conhecimento. Além de conseguir desenvolver outras habilidades, que dependem do convívio com crianças da mesma idade, outros adultos, etc."
Silvia também lamenta que, em um País com 50 milhões de estudantes na educação básica - em que 40% dos jovens de 19 anos abandonam a escola antes de completar o ensino médio e em que 53,5% das crianças do terceiro ano do ensino fundamental não conseguem fazer contas simples de Matemática-, a preocupação seja com o homeschooling, que afetaria cerca de 31 mil famílias. "O debate está centrado nos direitos individuais, no direito da família. Questões prioritárias e urgentes, como a qualidade da educação pública, estão sendo deixadas de lado", diz Silvia.
A única meta estabelecida pelo MEC para os primeiros cem dias de governo é o lançamento de um programa nacional de "definição de soluções didáticas e pedagógicas para alfabetização, com a proposição de método para redução do analfabetismo a partir de evidências científicas". Há menos de um ano, o ministério lançou um programa chamado Mais Alfabetização, que recebeu aporte de meio mais de R$ 500 milhões.
O nome escolhido para a Secretaria de Alfabetização, que deve comandar o novo programa, é o de Carlos Francisco Nadalim, dono de uma escola chamada Mundo do Balão Mágico, em Londrina. Ele é conhecido por vídeos na internet em que defende a educação domiciliar.
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