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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Análise | Filipe Martins, a pedra no sapato de Alexandre de Moraes, vira um abacaxi para o Supremo

Advogados de Filipe Martins querem mostrar, em defesa preliminar, inconsistências nos depoimentos que acusam o ex-assessor da Presidência e usar obra de Zanin para demonstrar que o acusado é vítima de ‘lawfare’

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Foto do author Marcelo Godoy
Atualização:

A 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) ganhou no seu sapato a pedra que incomodava o ministro Alexandre de Moraes durante a investigação da tentativa de golpe de estado: a tarefa de julgar o papel do ex-assessor da Presidência Filipe Martins no caso.

O ex-assessor especial da Presidência da República, Filipe Martins; seus advogados apresentam hoje sua defesa prévia ao STF Foto: NIlton Fukuda/Estadão

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Executadas por militares e civis, as ações que teriam o objetivo de manter no poder Jair Bolsonaro são o pano de fundo de uma disputa entre a defesa de Martins e o ministro Moraes desde que o acusado teve a prisão decretada em razão de uma viagem que não fez, o que o manteve no cárcere por seis meses, dez dias dos quais na solitária.

Martins é um dos 34 denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) sob a acusação de ter participado da tentativa de golpe de estado e de abolição do estado democrático de direito. A ele imputa-se a confecção de uma das minutas do golpe, aquela que previa prender Moraes e o também ministro do STF Gilmar Mendes, além do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), então presidente do Senado.

Com o levantamento do sigilo da delação e das peças da investigação da PF, a defesa de Martins descobriu que, desde 24 de outubro de 2023, o ministro Moraes havia deferido o afastamento do sigilo dos dados de geolocalização do telefone celular de Martins no período entre junho de 2022 e outubro de 2023. O mesmo foi pedido em relação aos outros dois membros do chamado “núcleo jurídico” do golpe: o padre José Eduardo de Oliveira e Silva e o advogado Amauri Feres Saad.

Padre José Eduardo de Oliveira e Silva, sacerdote da Diocese de Osasco, alvo da operação da Polícia Federal; depois, ficou de fora da denúncia de Gonet  Foto: Reprodução/@pejoseduardo/Instagram

A PF também executou um exame papiloscópico na primeira minuta do golpe, aquela encontrada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, um dos denunciados pelo MPF. O laudo não detectou as digitais de Martins no documento. Terminada a investigação, tanto o padre quanto o advogado, apesar de indiciados no inquérito, ficaram de fora da denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. Eis um primeiro ponto explorado pela defesa de Martins.

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Ela também joga luz no conteúdo dos diversos depoimentos do delator Mauro Cid. A defesa ressalta que o delator afirmou aos federais que não tinha nada que pudesse corroborar sua acusação em relação ao seu cliente. A PF perguntou: “Existe algum elemento material que o senhor possa apresentar para corroborar o que o senhor está indicando, especificamente sobre o Filipe Martins?” A resposta foi: “Não. Tudo foi feito no computador dele”.

Os advogados vão questionar o uso, pela acusação, do depoimento do general Marco Antônio Freire Gomes, então comandante do Exército. De fato, a denúncia de Gonet é categórica ao dizer que general afirmou que Martins participou da reunião do dia 7 de dezembro de 2022, na biblioteca do Palácio do Alvorada, e teria lido ali a minuta do golpe aos comandantes do Exército e da Marinha. Mas o que ficou consignado no depoimento do general foi a expressão de que “possivelmente” Martins participara daquele encontro e lera o documento. Por isso, a defesa vai pedir o vídeo do depoimento do general para saber em que circunstância Freire Gomes usou o termo “possivelmente”.

Para a defesa, o MPF usou um depoimento “completamente duvidoso do Freire Gomes” e o transformou em uma “afirmação categórica, como se fosse um fato indiscutível”. A reforçar essa versão está o fato de que o então comandante da Força Aérea, brigadeiro Carlos Almeida Baptista Júnior, não mencionou Martins em seu depoimento, bem como afirmou nunca ter se encontrado com o ex-assessor.

Os advogados também analisam a cronologia dos fatos apresentados por Cid, o delator. Em seu celular havia uma fotografia de uma das minutas do golpe. A imagem foi feita no dia 28 de novembro, quando Cid estava no Rio e enviada por ele para outro celular de sua propriedade. Martins nega a autoria desse texto. O documento cita são Tomás de Aquino e o trata como um iluminista, um erro que Martins, formado em filosofia, não cometeria.

Naqueles dias, Cid estava no Rio. O tenente-coronel voltou dali no dia 4 de dezembro e, só no dia 6 de dezembro – Cid afirma –, Martins apareceu com a minuta do golpe para entregá-la a Bolsonaro. Por fim, a defesa usa a obra Lawfare, uma introdução, que tem como um dos autores o ministro Cristiano Zanin, para defender que o ex-assessor vive uma situação semelhante à de réus da Operação Lava Jato, quando Zanin defendeu Luiz Inácio Lula da Silva, e alega que os mesmos requisitos que justificaram a suspeição do então juiz Sergio Moro estariam agora presentes no caso de Moraes.

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Trecho do relatório da PF sobre o encontro das fotografias de uma minuta do golpe feitas por Cid; defesa de Martins nega autoria Foto: Reprodução / Estadão

Este é o abacaxi que a 1.ª Turma do STF terá de descascar: o ex-assessor que fora mantido na cadeia acusado de fazer uma viagem que, depois, provou não ter feito, agora, foi denunciado em razão de uma minuta que, segundo a defesa, “não existe e que o próprio delator afirma não poder apresentar provas que comprovem sua existência”.

Mas por que Martins teria se tornado um alvo da delação de Cid? Ele, seus amigos e advogados têm a mesma desconfiança demonstrada por Moraes no último interrogatório de Cid, em novembro de 2024: o tenente-coronel estava tentando proteger pessoas por razões hierárquicas e pessoais.

Para tanto, decidira fazer carga sobre Martins, que seria o bode expiatório do golpe, permitindo deixar de fora de sua narrativa oficiais superiores, provavelmente, generais que teriam tido uma participação mais assertiva nas operações executadas pelos golpistas – a psicológica, executada para desmoralizar o Alto Comando do Exército, e a Copa 2022, usada para vigiar os passos do ministro Moraes.

O Manual de Operações Psicológicas do Exército: militares acusados pela PF usaram essas técnicas para executar ação militar, durante a tentativa de golpe Foto: Reprodução / Estadão

Assim, a acusação de Cid contra Martins seria só mais um episódio de um dos principais conflitos palacianos durante o governo de Bolsonaro: aquele que opôs a chamada “ala ideológica” à “ala militar” da Esplanada. Martins era tido como o “representante de Olavo de Carvalho” no governo. Teria, portanto, todas as credenciais para desempenhar o papel de levar à prisão de Jair Bolsonaro sem envolver os oficiais generais.

A delação de Cid aconteceu antes de a Polícia Federal desferir em 8 de fevereiro de 2024 a Operação Tempus Veritatis. Naquele dia, os federais fizeram buscas na casa de Bolsonaro, prenderam alguns militares e Martins, este sob o argumento de que ele teria ido com o presidente a Miami, em dezembro de 2022, sem passar pela alfândega. Isso faria a mera apreensão de seu passaporte uma medida inócua para impedir o risco de ele fugir, já que o ex-assessor teria se ausentado do País sem precisar utilizá-lo.

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E quais as provas os agentes diziam ter que justificariam a prisão? Um registro de entrada do acusado nos EUA. A defesa de Martins entregou ao STF passagens aéreas, recibos de Uber, fotografias e testemunhos que mostravam que o ex-assessor, embora tivesse planejado ir para os EUA com o chefe, desistiu da viagem e havia rumado para Curitiba, a fim de passar o ano novo com a família de sua mulher, no interior do Paraná.

Comprovantes da passagem e do despacho da bagagem de Filipe Martins entregues por sua defesa à PF Foto: Reprodução / Estadão

Tudo foi entregue ao ministro em fevereiro, enquanto Martins aguardava uma decisão de Moraes na cadeia. Diante da negativa do ministro de revogar a prisão, apesar da existência de uma dúvida razoável de que o ex-assessor não havia se ausentado do País, amigos e defensores de Filipe se mobilizaram para obter nos EUA as provas de que os registros daquele País não mostravam a entrada ou a saída de Martins. E conseguiram.

Ao mesmo tempo, os defensores pediram a Moraes e ao MPF que os dados de geolocalização do celular do acusado fossem analisados para confirmar que ele não se ausentara do País sem passaporte e, portanto, não haveria razão para ele receber um tratamento mais forte do que o dado a Bolsonaro. Embora o ex-presidente não tenha deixado o Brasil, após a Tempus Veritatis, ele se escondeu durante uma noite na Embaixada da Hungria, o que poderia demonstrar ânimo para fugir.

Foi só em 10 de agosto, depois da manifestação da Procuradoria-Geral da República, que Moraes concordou em soltar Martins, para que ele permanecesse em liberdade durante a investigação do caso, com a obrigação de usar tornozeleira eletrônica, de não dar entrevistas ou conversar com os demais investigados. Os seis meses que passara na cadeia teria sido um tempo que muitos de seus amigos acreditam ter sido usado para forçá-lo a assinar um acordo de delação, o que não ocorreu.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, durante sessão plenária da Corte; defesa o considera suspeito como Moro na Lava Jato Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Durante o ano passado, novas perícias e diligências foram feitas pela PF até a deflagração da Operação Contragolpe, em 19 de novembro, quando os federais fizeram novas buscas e prisões de militares. Só então as provas reunidas no inquérito do golpe foram tornadas públicas. Martins era acusado de conspirar pelo golpe em companhia do padre Oliveira e Silva e do advogado Feres Saad.

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Teriam construído uma minuta do golpe, que fora apresentada a Bolsonaro – conforme a delação do tenente-coronel Cid – e previa as prisões de Moraes, Gilmar e Pacheco. Bolsonaro a teria emendado para obter o apoio dos chefes militares, mantendo apenas a prisão de Moraes e o cancelamento das eleições. Eis a acusação feita pela PF.

Faltava, no entanto, conhecer a íntegra da delação de Cid e os áudios de mensagens dos demais militares acusados, cujos sigilos só seriam levantados pelo STF após a denúncia apresentada por Gonet, em fevereiro. Foi isso que permitiu à defesa de Martins fazer as descobertas com as quais pretende mostrar a “fragilidade da acusação” contra o ex-assessor, que está movendo processo no Middle District da Flórida, para saber como seus registros de viagem foram fraudados nos EUA.

Trecho do depoimento do general Freire Gomes citado pela defesa de Martins: advogados querem ver o vídeo gravado pela Polícia Federal Foto: Reprodução / Estadão

Os ministros do STF terão de dizer por que manter a acusação contra Martins se da denúncia ficaram de fora o padre e o advogado, que haviam sido indiciados pela PF como membros do “núcleo jurídico do golpe”. É sobre a consistência das provas, para além do depoimento do colaborador Cid, que o STF terá de se debruçar agora. A pedra no sapato de Moraes pode se transformar, assim, no abacaxi despejado no colo da 1ª Turma, cujo único dever será fazer com que o caso seja concluído com uma sentença justa.

Análise por Marcelo Godoy

Repórter especial do Estadão e escritor. É autor do livro A Casa da Vovó, prêmios Jabuti (2015) e Sérgio Buarque de Holanda, da Biblioteca Nacional (2015). É jornalista formado pela Casper Líbero.

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