Futuro chanceler descarta visita de Lula a Venezuela, Cuba e Nicarágua no início do governo

Mauro Vieira defendeu o retorno da Venezuela ao Mercosul, mas descartou visita presidencial e disse que momento é de trazer o Brasil de volta às ‘grandes discussões’; leia principais trechos da entrevista

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Por Felipe Frazão
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BRASÍLIA – O futuro chanceler Mauro Vieira disse ao Estadão que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva não deverá fazer viagens a países governados por regimes autoritários de esquerda, como Nicarágua, Venezuela e Cuba, no início do governo. Apesar de Lula planejar a reaproximação das nações da América Latina, o embaixador afirmou não haver qualquer motivo para essas visitas de Estado. As relações históricas do petista com governantes dos três países provocaram críticas que o desgastaram na campanha eleitoral.

O novo chanceler defendeu a ampliação rápida do bloco sul-americano, com o ingresso da Bolívia e o retorno da Venezuela. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

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Além de indicar cautela de Lula com regimes questionados internacionalmente por perseguição a opositores, Vieira deu detalhes sobre como será a retomada de relações com a Venezuela, a única suspensa pelo presidente Jair Bolsonaro. ”Vamos apoiar o retorno da Venezuela ao Mercosul”, declarou ele.

No plano econômico, o futuro ministro das Relações Exteriores disse ver aspectos positivos em iniciativas como a adesão plena do Brasil à Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual o País não deve desistir. “Os grandes temas todos têm de ser rediscutidos, reavaliados, mas não no sentido de voltar atrás. Reavaliados no sentido de ver, avaliar e saber o que fazer”, argumentou o embaixador.

Vieira espera “boa vontade” de Bruxelas para a conclusão do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul. “Tem mais chances agora. Há mais boa vontade do lado europeu porque está muito clara a declaração do presidente Lula sobre a política do meio ambiente, que era um dos entraves”, disse o futuro chanceler.

Ele também manifestou preocupação com a possibilidade de o Brasil perder direito a voto nas Nações Unidas por causa do não-pagamento das contribuições brasileiras aos organismos internacionais. “O Brasil está no Conselho de Segurança da ONU e não pode passar vergonha de ficar sem voto”, observou Vieira. Abaixo, os principais trechos da entrevista:

Primeiras medidas

“São as instruções do presidente. Ênfase na política com os vizinhos, com América do Sul e América Latina, reaproximação com a África e o diálogo com os pólos tradicionais de poder e econômicos, como Estados Unidos, União Europeia e China, e o multilateralismo, que está na Constituição.”

Regimes autoritários de esquerda

“Eu tenho certeza de que Lula não vai fazer um discurso em defesa do Daniel Ortega. Ele fez críticas. O que me dizem é que, se você se declara amanhã candidato à Presidência da Nicarágua, eles te prendem. Então, é difícil. Quanto a sair criticando, depende das circunstâncias. Lula não tem que acordar e falar: ‘Hoje vou fazer outra declaração contra a Nicarágua’. Não é assim. Não é o único país... Pense quantos países não são democráticos. Todo dia ele vai acordar e dizer: ‘Tal país mata e esquarteja as pessoas’. Isso é uma coisa de circunstância. Mas garanto a você: Lula não vai fazer uma visita de Estado à Nicarágua, nessa situação. Acho que basta.””

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Caracas e Havana

“Por enquanto, não. Tem que esperar um pouco mais. Não vejo por quê. Maduro não sei se respondeu se vem ou não à posse. Todos os países foram convidados. Se ele vai conseguir vir, não sei. O presidente ir no curto prazo à Venezuela, eu não vejo, e à Nicarágua, menos ainda. Não tem nenhum sentido. Havana não tem problema, não rompemos relações. Mas não vejo motivo, neste momento, para viagem a Cuba. Se for negociado algo, se tiver motivo, sim.”

Venezuela

“Vamos retomar as relações, mandar rapidamente um encarregado de negócios e depois escolher um embaixador e mandar. Não tem por que não ter um embaixador na Venezuela. Você não pode virar as costas porque o país tem um governo de orientação diferente da sua, sobretudo um país vizinho, com fronteira de 2 mil quilômetros na Amazônia, com um número de brasileiros, de garimpeiros. Não sabemos quantos são. Vamos continuar a Operação Acolhida, para quem passa para cá por necessidade. Ninguém migra porque gosta, é por necessidade. Não sei se esse fluxo se mantém, mas dizem que sim. Se formos convidados, sempre estaremos dispostos a participar do mecanismo de negociação com a oposição, criado com mediação do México, da Noruega. Juan Guaidó foi esquecido pelos americanos, o Grupo de Lima acabou. Facilita.”

Ampliação do Mercosul

“Vamos apoiar o retorno da Venezuela ao Mercosul. Eles não tinham ainda cumprido alguns requisitos. São alguns requisitos legais. Não sabemos como está a coisa por não termos ninguém em Caracas. A Bolívia quer entrar no Mercosul e o acordo está no Congresso, que precisa aprovar. Sem dúvida o governo vai apoiar. A ampliação do Mercosul é importante.”

Ingresso do Brasil na OCDE

Isso não começou agora. A OCDE é uma organização importante e o Brasil já participa não é de agora. São quase 30 anos. Quando estive em Paris, representava o Brasil no conselho de desenvolvimento, tem vários comitês, inclusive de aviação civil que permitiu o acordo da Embraer com a Bombardier, o financiamento de exportação. O Brasil já participa de muita coisa. O que está sendo feito é a candidatura a membro-pleno, que é um processo longo, precisa adaptar a legislação às regras da OCDE, uma tarefa de bom tamanho. A OCDE exige um comportamento padronizado, com legislações iguais, na área fiscal e tributária. E as estruturas são diferentes. Tem que ver o ritmo, a velocidade com que isso vai ser feito. O que for positivo, interessante, tem que ser mantido. Cada governo tem suas prioridades, suas necessidades. Terá que haver uma avaliação interna de cada órgão e uma convergência dos ministérios todos para se chegar a uma posição comum. Os grandes temas todos têm de ser rediscutidos, reavaliados, mas não no sentido de voltar atrás. Reavaliados no sentido de ver, avaliar e saber o que fazer. Será um início de governo difícil.”

Vieira sobre acordo Mercosul-União Europeia: 'Há mais boa vontade do lado europeu porque está muito clara a declaração do presidente Lula sobre a política do meio ambiente, que era um dos entraves.' Foto: Yves Herman/Reuters

Acordo entre Mercosul e União Europeia

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“É um acordo importante. Temos que continuar, fazer um exame interno no ministério da situação, com os ministérios envolvidos, depois com os sócios e voltar a falar com a União Europeia. Tem mais chances agora. Há mais boa vontade do lado europeu porque está muito clara a declaração do presidente Lula sobre a política do meio ambiente, que era um dos entraves.”

Viagem aos Estados Unidos

“Não deu para fazer antes da posse porque Lula estava ocupadíssimo com as negociações da PEC, formando ministério. São duas coisas que o ocupam muito. A data ainda não foi fechada. Temos muitos interesses em comum, investimentos, princípios de democracia. O que lastreia as relações bilaterais é a economia, são as trocas comerciais, apesar de não ser mais o primeiro parceiro, é o segundo país, mas é muito importante. O fluxo de investimentos e o fluxo de pessoas entre os países, as viagens de alto nível, de pessoas, de turismo que eles atraem. O Brasil voltando a crescer vai diminuir o fluxo migratório ilegal, a pandemia e toda a questão econômica estimulou mais ainda.”

Retorno de missão do Brasil no Haiti

Não sei se o Brasil participaria. Temos que ver o modelo exato, porque me disseram que nem isso está muito preciso. Sonda-se o interesse de países que gostariam de participar, mas não tem nada concreto. Tem que ser muito estudado. Ficamos 12 anos na Minustah e não resolveu o problema. Talvez tivesse que haver um mecanismo diferente. Na ocasião, eu era embaixador na ONU e os EUA apoiaram muito o fim da Minustah. Muitos países achavam que era cedo. Está provado que não estava na hora. Nós teríamos ficado um pouco mais, talvez. Não sei se uma força de manutenção da paz é o formato ideal. O Haiti é um país com muitas carências, um Estado frágil.”

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Dívidas internacionais de R$ 5,5 bilhões

“Pagar tudo de uma vez é muito difícil. É muito dinheiro. Tem que pagar de acordo com a necessidade. No Orçamento não tem o necessário para pagar o daquele ano, então essa dívida vem se acumulando ao longo dos anos. Você paga, não paga integralmente. Está crescendo. Tem que ser feito um esforço. O mínimo tem que pagar esse ano, tem que ver a disponibilidade. De um jeito mínimo, tem que aparecer (dinheiro). O Brasil está no Conselho de Segurança da ONU e não pode passar a vergonha de ficar sem voto. Espero que este governo ainda pague. Isso é o pedágio do Brasil no mundo. Multilateralismo é um tema que está na Constituição, é uma obrigação constitucional.”

Prioridade à África

“O presidente me disse que a África vai voltar a ser uma prioridade. Ele fez várias visitas à África. O atual presidente não foi nenhuma vez. Temos um vínculo grande, sobretudo com a África ocidental, banhada pelo Atlântico. É uma coisa de povo. Em Gana, no Benin, você vê nomes tipicamente brasileiros. São produtos da escravidão e do retorno. Em Gana tem um bairro chamado The Brazilians, conhecido como “Tá bom”, por essa coisa de dizer “tá bom”. É uma relação muito forte e próspera. Os africanos querem ter relação com o Brasil, não paternalista, mas parcerias, negócios... A fronteira do crescimento econômico é a África. É um continente enorme, rico, com grande massa de população. O crescimento da África vai ajudar a média mundial. Temos que estar presentes, ver o que eles precisam e nossos interesses, de nosso comércio exterior. O governo do presidente Lula, os ministros dele e da presidente Dilma viajaram muito à África. Temos mapeado, sabemos quais zonas atraem mais a cooperação. Vamos manter uma cooperação de nível, sempre em consulta com eles, dentro de suas necessidades e interesses, e uma cooperação soberana, de igual para igual.”

Reorganização do Itamaraty

“Vamos criar uma Secretaria de Clima, Meio Ambiente e Energia. São temas correlatos, se interpenetram. A questão climática será um tema central da agenda. Os nomes atuais são pouco precisos, tem que trocar. Tem uma secretaria que cuida de cento e tantos países, de Europa, Oriente Médio e África. É demais. Vamos dividir e rearrumar. O presidente sempre deu muita atenção aos brasileiros no exterior, e eu me surpreendi quando soube que estamos perto de 4 milhões. Temos que fortalecer a área consular e jurídica, para dar atenção e atender essas pessoas. Estou tomando pé da situação. Vamos estudar a reabertura de algumas embaixadas, no Caribe, na África... fechar foi uma bobagem, custa pouco, são embaixadas pequenas. E é um símbolo grande ter a bandeira fincada num país, ter um representante. Sou favorável a concursos maiores, mas temos que avaliar qual o número ideal. Teve turma com 35 alunos, a anterior 20, não sei por que uma oscilação tão grande. Houve um fato grave que, em 2020, não houve concurso. Uma interrupção, por causa da pandemia, na história do Rio Branco.”

Vieira sobre mudanças no Itamaraty: 'Vamos estudar a reabertura de algumas embaixadas, no Caribe, na África...' Foto: Agência Brasil/Arquivo

Próximos embaixadores

“Não tratei ainda com o presidente e, mesmo que tivesse acertado uma lista, não poderia dizer. Precisa ter o agrément, não podemos divulgar antes de receber o ‘de acordo’ do país. Os nomes da presidenta Dilma (Rousseff) e do Kakay (Antônio Carlos de Almeida Castro, advogado criminalista) só vi pelos jornais. Não estou dizendo que não vão ser embaixadores, nem que vão ser. Embaixador é representante pessoal do presidente.”

Campanha por mulher na chancelaria

“Não me incomodou. O presidente é quem decide; ele poderia ter decidido por uma mulher. Temos embaixadoras na Suécia, Singapura, tivemos há pouco tempo em Genebra. Estou aberto, e o presidente também, a examinar (indicações de embaixadoras). Havendo a possibilidade não tenho dúvida que ele vai apontar. Não tem nada estabelecido. Estamos abertos à participação de mulheres em todos os escalões. O Itamaraty teve a primeira funcionária pública brasileira, é vanguarda.”

Vieira sobre o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo: "Eu me surpreendi com o nível de neurose, de maluquice. Nunca vi igual." Foto: Evaristo Sá/AFP

Convite de Lula

“Falam que eu frustrei o Itamaraty. Não fui eu, foi o presidente. Ele que me escolheu. Tem muita gente que faz propaganda, eu estava quieto no meu lugar, não fiz publicidade, porque não é um cargo eletivo. Fiquei discreto. É minha forma de ser. Eu vim ao Rio votar no primeiro e no segundo turno e ninguém me viu, ninguém falou comigo. Só minha família e amigos. O presidente me telefonou e fez o convite. Disse que queria me encontrar e convidou. Já nos conhecíamos há pelo menos 20 anos, não era nenhum estranho para ele. Tínhamos bastante contato. O processo decisório dele eu não sei, como escolheu se vai ser homem, mulher, diplomata, político. Ele não me falou isso. Lula me convidou a ir ao Egito, na Cúpula do Clima. Ele me telefonou e perguntou se eu não queria ir. Eu disse: ‘Lógico, com prazer’. Começamos a conversar lá e depois ele me telefonou um dia. Estive lá três dias e meio com ele. Foi uma coisa apoteótica o efeito da eleição dele no mundo. A gente às vezes não se dá conta de que o Brasil atrai a atenção de todo mundo. Ele não parou, falou com emissário dos EUA, da China, ministros do exterior.”

PEC das Embaixadas

“Acho que é nocivo para a carreira. E é uma coisa que não conheço em nenhum País. Nos Estados Unidos um político pode ser embaixador, mas tem que renunciar. Para um senador que tem oito anos de mandato pode parecer mais interessante, mas para um deputado, acho um risco de se afastar e não se reeleger. Seria arriscadíssimo. A menos que não queira continuar a carreira política. Acho que a PEC perdeu um pouco de fôlego, talvez (seja) o fim da legislatura. Se fosse aprovada, seria danoso para a carreira diplomática.”

Ex-chanceler Ernesto Araújo

Ele trabalhou cinco anos comigo. Não o promovi uma única vez. Eu me surpreendi com o nível de neurose, de maluquice. Nunca vi igual. As ideias me surpreenderam muito. Nunca pude imaginar que ele acreditasse que a terra é plana, que o globalismo é o mal do mundo. É uma coisa quase religiosa. Ele era uma pessoa muito fechada, calado. A posição política dele eu nunca soube, nunca perguntei. O sujeito pode ser lulista, bolsonarista. Contanto que trabalhe direito, não interessa. Não faremos perseguição. Não pode extrapolar, deixar de cumprir instruções. Aí pede demissão, vai fazer outra coisa.”

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