A polêmica em torno da indicação da subprocuradora Raquel Dodge feita por um presidente recém-denunciado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), para ocupar o cargo de Rodrigo Janot, a partir de setembro, parece ter ofuscado a chegada da primeira mulher à frente do Ministério Público da União. Desde 1891, o posto só foi ocupado por homens, sendo Janot o 40º procurador-geral. Além da PGR, outras três instituições são presididas por mulheres: Supremo Tribunal Federal (STF) com Cármen Lúcia, Superior Tribunal de Justiça (STJ) com Laurita Vaz e a Advocacia-Geral da União com Grace Mendonça. Apesar do avanço, o número de mulheres em postos de indicação nos Ministérios Públicos estaduais e nos tribunais superiores, ainda é muito baixo.
Levantamento feito pelo Estado mostra que, dos 27 procuradores-gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, apenas três, ou seja, 11%, são mulheres - no Espírito Santo, na Bahia e em Roraima. O cargo é de comando do Ministério Público de cada Estado e é indicado pelo governador a partir de lista tríplice, em modelo semelhante ao da escolha do procurador-geral da República.
Já nos cinco tribunais superiores do País - além do STF e do STJ, o Superior Tribunal Militar (STM), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST) -, dos 93 postos ocupados por ministros, apenas 16 estão com mulheres - o que significa pouco mais de 17%. Os ministros são nomeados pelo presidente da República e previamente aprovados pelo Senado Federal.
Para a pesquisadora do grupo de pesquisa em Direito e gênero da Escola de Direito da FGV-SP, Luciana Ramos, embora a indicação de Raquel tenha vindo num momento conturbado, “em que a Lava Jato estava indo bem com o Janot e, agora, ninguém sabe o que vai acontecer”, a chegada da primeira mulher na PGR é um fato a ser celebrado. “As instituições precisam ter pessoas diversas nos seus postos de tomada de decisão. A diversidade é um valor democrático. Não se pode tirar tantas pessoas de um espaço de poder”, disse a pesquisadora.
Ela destaca que, nos postos que exigem indicação, o ingresso de mulheres é mais tímido. “Em carreiras que você ingressa por meio de concurso público o acesso normalmente é mais igualitário”. A sugestão, segundo Luciana, é que, no Ministério Público, haja um engajamento dos procuradores para indicarem na lista tríplice perfis mais diversos. “Ao menos na montagem da lista deve ter essa preocupação com a diversidade”, afirmou.
Para a pesquisadora, mais do que uma questão de gênero, a diversidade é necessária para que sejam tomadas decisões mais amplas. “As mulheres ainda são minoria e, em termos de democracia e representação, isso perpetua decisões historicamente enraizadas”, disse. “É natural que os homens indiquem pessoas iguais a eles - brancos, da mesma faixa etária e de renda.”
O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti, ressalta que, em concursos na PGR, a entrada das mulheres ainda é muito baixa - cerca de 1/3, ele estima. Segundo ele, mesmo com a maioria das faculdades de Direito formando mais mulheres do que homens, a carreira de procurador da República ainda oferece condições "hostis às mulheres". "As nossas carreiras obrigam as pessoas a se deslocarem para outros Estados, sem perspectiva de quando voltarão para suas bases. É muito mais difícil para as mulheres, com as obrigações impostas pela sociedade, mesmo quando elas são muito capacidades", disse o procurador.
O procurador ressalta que, no próximo encontro nacional dos procuradores da República em 2018, um dos temas centrais será a questão de gênero. Ele descarta, porém, que o problema seja falta de diversidade na lista tríplice. "Não é esse o gargalo. As últimas listas tríplices, pelo menos na PGR, tinham mulheres na composição."
Raça. Embora não haja um levantamento específico sobre mulheres negras e indígenas ocupantes desses cargos, a ativista e mestre em Filosofia Política Djamila Ribeiro afirma que essa é uma discussão ainda mais atrasada no País.
“Quando se faz um debate sobre participação feminina, normalmente se fala de mulheres brancas. Esquecemos das negras e indígenas. Se a discussão racial não for levantada, vamos continuar priorizando o grupo que priorizamos sempre”, disse Djamila. A ativista destaca que sempre que uma mulher negra ocupa um cargo alto na política, como o caso da ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, o caso vira notícia. “Isso é vendido como um discurso positivo, mas mostra como nossa sociedade é atrasada. Não era para ser notícia, nem uma exceção.”
Executivo. Em cargos de indicação no Poder Executivo, as mulheres também são minoria. Das 525 secretarias estaduais dos 27 Estados e Distrito Federal, apenas 84 são comandadas por mulheres, o que representa apenas 16% dos casos. O cálculo tomou por base a atualização nos sites dos governos em abril deste ano e não considerou superintendências e subsecretarias.
“O caminho ideal, obviamente, seria que os próprios chefes do Executivo se preocupassem com a paridade de gênero na composição de seus governos, mas este movimento pode levar anos e anos até que seja voluntário. A política de cotas pode ser um caminho, inclusive parece mais fácil discuti-la em cargos que não envolvem eleições, e sim nomeações”, afirmou Luciana.
Nos Estados do Rio de Janeiro, Sergipe e Mato Grosso, nenhuma mulher ocupa o cargo de secretária estadual. Em São Paulo, apenas duas: Linamara Rizzo Battistella, na Secretaria de Direito da Pessoa com Deficiência, e a coronel Helena dos Santos Reis, na Casa Militar.
Norte. A região Norte contempla o maior percentual de mulheres nas pastas, com 28%, e o Sudeste, a menor, com 6%. A maior participação feminina dos Estados nortistas está no Amapá, com 39% das mulheres ocupando pastas do governo, porém quatro delas com status de extraordinária.
A participação das mulheres foi majoritária em pastas relacionadas a direitos humanos, assistência social, lazer e educação, sendo estas ocupadas por 51 secretárias. As secretarias de Agricultura, Transporte e Fazenda não estão ocupadas por mulheres em nenhum dos Estados. Na Secretaria de Governo, a exceção é no Espírito Santo; já a Casa Civil só é ocupada por mulheres no Acre e na Paraíba.
Para a representante do escritório da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, o fato de as mulheres serem exceção nas secretarias consideradas “áreas duras” pelos governos está atrelado à cultura patriarcal de excluí-las de decisões estratégicas. “Claro que é preciso valorizar essas áreas que as mulheres tradicionalmente estão, ser secretária ou ministra de Política para Mulheres ou de Direitos Humanos é muito estratégico. A questão é mudar a cultura para que qualquer pasta possa ser dirigida por uma mulher”, disse Nadine.
Respostas. Procurados pelo Estado, a maioria dos governos estaduais alegou que as mulheres ocupam grande número de postos-chave no governo, em outros órgãos que não nas secretarias. O governo do Sergipe, onde nenhuma das pastas é ocupada por mulheres, informou que desenvolve políticas públicas por meio da Secretaria da Mulher. A pasta, que também é responsável pelos temas de inclusão, assistência social, trabalho e direitos humanos, é comandada por um homem. São Paulo afirmou que o contingente feminino de funcionários é 10,8% maior que o de homens. Rio de Janeiro e Mato Grosso preferiram não comentar.
EM CARGOS ELETIVOS, MULHERES SÃO MINORIA
Em cargos eletivos, a participação feminina também é baixa. Após as eleições de 2014, a Câmara dos Deputados passou a ser ocupada por pouco mais de 9% de mulheres e o Senado, por 14%. Segundo dados apresentados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em março deste ano, o Brasil ocupa a 154.ª posição no ranking de participação feminina no Congresso, como informou o Estado. Por esse critério, o Brasil também é o país latino-americano com a menor representação de mulheres em seu parlamento.
Um levantamento feito pela Procuradoria da Mulher no Senado sobre 2016, divulgado em dezembro, destaca que, depois das eleições municipais, as mulheres passaram a ocupar 11,6% das prefeituras e representam 13,5% das vereadoras eleitas. Apenas uma governadora mulher foi eleita no País em 2014, Suely Campos (PP), em Roraima, e, nas assembleias legislativas, 11,3% deputadas estaduais são mulheres.
Para Maria da Conceição Lima Alves, consultora legislativa do Senado e responsável pela pesquisa, a ocupação de cargos está estagnada, em todos os Poderes. "Se a gente continuar nesse patamar, demoraríamos 50 anos pra chegar à paridade", disse. A pesquisadora fala, ainda, que parte das mulheres que ocupam cargos no governo é esposa ou familiar de políticos que já estão no poder. "Isso já indica a perpetuação (de poder) do homem. Por trás, indiretamente, é o político homem que está no poder."
A reforma política, em discussão na Câmara sob relatoria do deputado Vicente Cândido (PT-SP), cita alguns projetos que permitiriam uma maior presença feminina em cargos eletivos. Nas eleições para o Senado com duas vagas, deve haver um candidato de cada sexo por partido, coligação ou federação (estabelecendo, então, uma cota de ⅓ para elas na Casa). O tempo de propaganda política de rádio e TV para mulheres subiria de 10% para 30%. Além disso, 5% do fundo partidário para financiamento de campanha seria destinado às campanhas de candidatas.
O Congresso também discute uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que reserva para as mulheres 30% dos assentos na Câmara, nas Assembleias Legislativas, na Câmara Legislativa do Distrito Federal e nas Câmaras municipais. Maria da Conceição duvida, porém, que haja um movimento para que se aprove os projetos ligados à participação feminina.
"É difícil imaginar que uma bancada composta só por homem vai se preocupar com isso. (Os parlamentares) sabem que vão perder vagas para dar lugar às mulheres", afirmou a consultora. Para os cargos de indicação, ela diz que é preciso, principalmente, pressão do partido e da sociedade. "Para que o governante tenha vergonha de apresentar um governo sem nenhuma mulher", declarou Maria da Conceição.
Para a porta-voz da ONU, o primeiro passo para se alcançar a paridade de gênero deve ser por meio de ações afirmativas. “Se somos mais de 50% da população, essa representação deveria estar nas cotas”, disse Nadine, que afirma que a ONU Mulheres recomenda a paridade total, isto é, de 50%. “É necessário um compromisso da sociedade e partidário, com uma vontade política de propor leis e políticas públicas, com recursos apropriados. A sociedade está desperdiçando experiência e conhecimento de metade da população.”