A Bharat Biotech, fabricante da vacina Covaxin, para a qual o governo federal empenhou R$ 1,76 bilhão para compra de 20 milhões de doses do imunizante, rescindiu o contrato de representação no Brasil com a Precisa Medicamentos. No comunicado, divulgado na sexta-feira 23 de julho, o laboratório também negou que tenha assinado dois documentos incluídos na negociação com o Ministério da Saúde brasileiro. Conforme revelou a rádio CBN e o Estadão confirmou, constatou-se acolagem nos papéis do pedido de vista de Francisco Sánchez, empregado da representante brasileira do laboratório. As provas da falsificação estão em poder da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, no Senado.
Em 20 de março, o deputado bolsonarista Luís Miranda e seu irmão, Luís Ricardo Miranda, funcionário de carreira do Ministério da Saúde, denunciaram ao presidente Jair Bolsonaro na casa dele, o Palácio da Alvorada, indícios de irregularidades de negociata. À época na chefia da importação no Departamento de Logística da pasta, o servidor informou que foi pressionado a apressar o pagamento de mais de R$ 200 milhões de adiantamento, não previsto no contrato de compra, como condição para a liberação da remessa das vacinas, das quais nunca foi entregue uma dose sequer. Segundo os irmãos Miranda, Bolsonaro prometeu na ocasião acionar o "DG" (diretor-geral) da Polícia Federal (PF) para investigar a suspeita. Na sexta-feira 23 de junho, a dupla depôs na CPI.
Na segunda-feira seguinte ao depoimento, 26, o secretário-geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, enfurecido, ameaçou, em entrevista coletiva sem perguntas, o funcionário por "haver adulterado" a invoice (fatura) e, em nome de Bolsonaro, informou ter acionado autoridades para investigar o crime. Leia-se: Advocacia-Geral da União (AGU), Controladoria-Geral da União (CGU), Procuradoria-Geral da República (PGR) e Polícia Federal. A primazia de denunciar o denunciante em inquérito de suspeita de corrupção num Estado de Direito, contudo, não foi formalizada, porque se constatou que o documento estava no sistema do Ministério da Saúde. O Planalto disse que a versão continha equívocos e foi corrigida. Mas foi providenciada a terceira versão para o caso na leitura pelo líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, da mirabolante narrativa em que o presidente teria exigido informações ao então ministro da Saúde, general de divisão da ativa Eduardo Pazuello, na segunda-feira 22 de março. E , então, este teria demandado explicações ao secretário executivo da pasta. Num recorde digno de figurar no Guinness, o tenente-coronel Elcio Franco lhe teria informado nada constar. No dia seguinte, Pazuello seria exonerado.
O recordista foi convenientemente resguardado num gabinete do Planalto, ao qual se destinaria seu comparsa Elcio Franco, demitido do cargo na sexta 26 de março. A proteção por habeas corpus de altíssima conveniência expedidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) não escondeu evidências vexaminosas, reveladas em depoimentos colhidos pela CPI. Entre estas, negociatas disputadas por 175 coronéis pilhados em trocas de e-mails na negociação do imunizante indiano e civis liderados pelo ex-diretor de Logística Roberto Dias, acusado pelo cabo PM de Minas da ativa, e durante o expediente, de ter exigido um centavo de dólar por dose negociada, desta vez, pelo reverendo Amilton de Paula. A senadora Simone Tebet apresentou na CPI 23 evidências de falsificação da invoice da Precisa, como inglês precário de fritador de hambúrguer (prince, príncipe, em vez de price, preço, e airpor (?), em vez de airport, aeroporto).
A denúncia da Bharat Biotech desmentiu Onyx, ora presenteado com a grana preta da Previdência no Ministério do Trabalho. Seria o caso de exigir do barão de Petrolina que peça perdão pelo aval à mentira oficial desmascarada. Mas como exigir honra do líder de um desgoverno de ladrões de vacina e falsificadores pés de chinelo de invoices?
Tudo se resumiria a um caso policial se não tivesse caído nas mãos da CPI um escândalo evidente de prevaricação do presidente da República. Só que vieram esgares e arreganhos de golpismo explícito do recente ministro de Defesa, general Walter Braga Netto, em imprópria defesa da honra do Exército de Caxias (coitado do duque!). Os cuidados tomados pelo presidente da CPI, Omar Aziz, não evitaram os relinchos de uma nota oficial golpista e importuna do almoxarife de fardas e canhões. O senador constatou o "óbvio sussurrante" ao registrar que "membros do lado podre das Forças Armadas estão envolvidos com falcatrua dentro do governo". Mas o reservista de pijama atropelou bons modos e a democracia ao ameaçar impunemente: a declaração "atinge as Forças Armadas de forma vil e leviana, tratando-se de uma acusação grave, infundada e, sobretudo, irresponsável". Bolsonaro compartilhou o recado inconveniente, deixando claro quem o inspirou, se é que aqui cabe palavra tão leve.
A favor do mandante só se pode apontar a covardia explícita dos chefes dos Poderes democráticos, que se limitaram a belas frases encharcadas de saliva, mas sem a necessária cusparada. O que esperar de gente como Arthur Lira, Rodrigo Pacheco e Luiz Fux a não ser que, estando sentados em poltronas de tão altos espaldares e confortáveis assentos, a elas se apeguem com o despudor cínico dos covardes? O silêncio dos "pais da pátria", que de amada não tem nada, continuará protegendo os falsários a serviço do atravessador favorito do filho que, segundo assegura o vice da Câmara dos Deputados, Marcelo Ramos -- no Nêumanne Entrevista, no Blog do Nêumanne desta semana --, é protegido pelo pai não por amor, mas porque sabe demais sobre ele.
*Jornalista, poeta e escritor
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