O inquérito aberto pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) à época, Dias Toffoli, em 18 de junho de 2020, para investigar falsas informações em discursos políticos mereceu críticas pesadas de especialistas. Caso do professor da Universidade de São Paulo (USP) Modesto Carvalhosa. E de leigos jamais votados, como este autor.
Um crítico tem sempre menção oculta ao ser lembrado o placar da votação daquela sessão no plenário, 10 a 1, tendo sido voto derrotado odo já tradicional outsider Marco Aurélio Mello, ex-decano, aposentado e ainda não substituído no nada excelso pretório. O habitual voto do contra foi dado com a pecha apocalíptica, que a ação ganhou, de "inquérito do fim do mundo, sem limites". Mello também ousou profetizar que seria "natimorto", destacando tratar-se de "uma afronta ao sistema acusatório do Brasil", pois "magistrados não devem instaurar [inquéritos] sem prévia recepção dos órgãos de execução penal". A profecia não se cumpriu, mas dificilmente, se submetida a nova apreciação, não terá idêntica reprovação solitária, 9 a 1, ficando o voto solidário a ser dado por uma espécie de extensão da Advocacia-Geral da União (AGU) na Corte, Kassio Nunes Marques. Se o ministro recente e o responsável pela ascensão dele, Jair Bolsonaro, quisessem ter razão, pelo menos o órgão encarregado de representar juridicamente a Presidência da República, à época dirigido por José Levi Mello do Amaral Júnior, teria apoiado o protesto isolado do ministro dissidente. "Não se pode recusar à Suprema Corte do nosso país os meios necessários para o próprio resguardo institucional", registrou. "Nós concordamos com o inquérito porque nós queremos ter o direito de participar, sobre atos e diligências previamente", disse o advogado especial do chefe do Executivo, Augusto Aras, na pretensa condição de procurador-geral da República, pobre coitada e desvalida pelo menos no caso.
Dois anos e quase dois meses depois, em documento também assinado pelo atual titular da AGU, Bruno Bianco, o capitão terrorista postulou: "Há violação persistente e difusa de direitos fundamentais dos acusados, há uma omissão do Supremo Tribunal Federal em neutralizar os atos destoantes dos preceitos fundamentais e há um claro bloqueio institucional para o aperfeiçoamento da temática, já que alteração regimental é dependente da iniciativa da Suprema Corte, razão pela qual somente ela pode reparar as violações constitucionais em andamento" - como reza a Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Embora o mundo não tenha acabado, não é possível imaginar que esse arrazoado se venha a impor.
Sua remessa para o lixo do STF e da História será apressada por decisão descabida de Bolsonaro após a ADPF. Da mesma forma que esta não tem nenhuma possibilidade de sequer ser discutida, sua decisão de mandar um funcionário da Presidência ao Senado para protocolar o pedido de abertura de impeachment do relator da ação, ministro Alexandre de Moraes, pôs gasolina (a R$ 7,36 o litro) na fogueira do conflito institucional. Em 1.º de julho, Moraes mandou arquivar o inquérito sobre atos antidemocráticos dos bolsonaristas, atendendo a despacho da Procuradoria-Geral da República (PGR). Mas determinou que se abrisse investigação acerca da existência de organização criminosa que usa recursos públicos para divulgar fake news.
A decisão foi posterior à péssima repercussão da convocação aos fãs pelos cantores Sérgio Reis e Eduardo Araújo, que viajaram da Jovem Guarda falida ao sertanejo milionário, para a manifestação de apoio a Bolsonaro, na garupa do maior feriado público do Brasil, o 7 de Setembro. Em visível falha de juízo, o recriador do clássico Menino da Porteira anunciou o fechamento por locaute (crime) de estradas (crime), que provocaria desabastecimento de gêneros alimentícios (crime), reivindicando mudança da política de preços da Petrobrás (crime). Num rompante absurdo, Sérgio atropelou a Lei da Segurança Nacional, vigente, mas prestes a ser substituída pela Lei de Defesa do Estado Democrático, falando em derramamento de sangue (!) e expulsão de nove dos 11 ministros do STF, com citação especial a Alexandre de Moraes. Bolsonaro não defendeu os boissominions voadores, mas alega interesse próprio. Como lembrou o sociólogo Carlos Melo, no Estadão, recorreu à martirização usando a mãe, que foi visitar no meio da crise, ao lado do trio queridinhos do papai. "Não me reconhece mais", gemeu. Com sofrência.
Na série Nêumanne Entrevista, no Blog do Nêumanne no Estadão, o presidenciável Ciro Gomes convocou uma vigília nacional para afastá-lo da Presidência da República e processá-lo. Antes da campanha, em que o ex-governador do Ceará pregará a exigência de um plano nacional de enfrentamento da crise, que o presidente ajudou a ampliar. Pois comanda, de forma desastrada, o colapso sanitário causado pela pandemia de covid-19, a crise econômica, com recordes de alta inflacionária, miséria, fome, desemprego e quebradeira de empresas, e as tensões política e institucional, tudo anabolizado por seus pensamentos, palavras e obras.
Neste ponto, a entrevista evoca a conclusão do editorial A asfixia da política, deste jornal, na segunda-feira 23 de agosto: "As administrações petistas levaram a política para o crime, como se viu no mensalão e no petrolão. Agora, Jair Bolsonaro impõe ao País trajetória semelhante. Em vez de oferecer propostas políticas, seu governo suscita a cada dia novos conflitos e novas investigações criminais. É preciso investigar e punir o crime, mas preservando a política - o que significa, entre outras coisas, afastar da política quem é mais afeito ao crime do que à política". É ele!
*Jornalista, poeta e escritor