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Direto ao assunto

Paulo Guedes, bobo sem corte

Economista de Chicago, dito “posto Ipiranga”, que Bolsonaro prometeu consultar sobre assuntos econômicos, que confessou não dominar, virou um fornecedor de inconveniências de um desgoverno sem chão

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Jair Bolsonaro, exposto às intempéries de um país que tem acumulado ao longo dos últimos anos décadas perdidas em sequência e desperdiçado oportunosas ensanchas por incompetência, má gestão, corrupção e má-fé, não pode ser acusado sequer de cúmplice nesses despautérios específicos. Ao contrário, emergiu de três decênios de membro do baixíssimo clero da política profissional, em dois anos de vereador no Rio e 28 de deputado federal, ganhando um pleito presidencial, no mínimo, improvável, justamente por isso. Montado na nostalgia da bonança econômica de uma ditadura tecnocrático-militar fascistoide e, mais ainda, no apetite desmedido de uma esquerda que se lambuzou no melaço da corrupção, subiu ao pódio da ilusão generalizada de que se disporia a contrariar a própria biografia para construir o futuro de um Brasil liberal.

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Para tanto agiu com a sagacidade de alguém que só precisava fazer aquilo que o principal artífice das articulações políticas do Partido dos Trabalhadores (PT) na oposição implacável e no governo glutão, José Dirceu, prometia antes: "não roubar e não deixar roubar". Para isso montou num pilar da própria convicção, que ele chama de "conservador nos costumes", encarnado em Damares Alves, e em dois tomados emprestados de aliados da última hora, por convocação da vontade popular: a economia liberal de Paulo Guedes e o combate de Sergio Moro ao saque ao erário.

Damares submergiu involuntariamente no instante em que a chamada inapropriadamente de "ala ideológica" foi forçada a pular no mar após a saraivada de rojões que incinerou vestes, mãos e pés do ex-chanceler Ernesto Araújo e do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub. A pastora chegou a ser aventada como eventual sucessora de Hamilton Mourão na chapa que tentará disputar a reeleição, mas foi guardada no quarto de despejo pela ação sôfrega e avassaladora do Centrão. Este se tornou a tábua de salvação do chefão das milícias do "Estado" bolsonarista em troca da única cloroquina que funciona: mais de um terço dos votos parlamentares que podem evitar o impeachment, que a imprudência do titular da ocasião do Executivo não se cansa de cortejar.

O ex-juiz da Lava Jato, que, por cinco anos, acenou com a possibilidade de encerrar a impunidade dos poderosos corruptos, teve de entregar o Ministério da Justiça e da Segurança Pública a um áulico declarado do petismo que mandou o oitavo mandamento das tábuas da lei judaico-cristã às favas. E, para cúmulo do cinismo, o posto do qual foi alijado passou a ser ocupado por uma prova bípede da acusação, que ele fez ao sair, de que Sua Excelência pretendia interferir politicamente na Polícia Federal (PF). Agora o novo ocupante do cargo, delegado Anderson Torres, em entrevista à Veja, realizou o sonho dourado de Márcio Thomaz Bastos de usar a polícia judiciária como guarda privada da famiglia do poderoso chefão. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) adia o inquérito para as calendas, por não definir se o necessário depoimento do investigado no processo deve ser presencial ou pode ser por escrito. Acredite se quiser.

Sobrou Paulo Guedes? Ou melhor: sobrou o quê de Paulo Guedes? Diariamente desmoralizado por intervenções pessoais do capetão sem noção no depósito do devastado "posto Ipiranga" do governo, resta ao discípulo de Milton Friedman, que a qualquer hora pode ser despejado do túmulo por tanto se remexer, ocupar o lugar do bobo da corte, cujas graçolas não fazem mais o dono do picadeiro sorrir. Até figurantes no drama da perda de prestígio generalizado de uma corte de circunstâncias, sem pompa nenhuma, debocham de suas tiradas surrealistas. No dia em que Guedes atribuiu o colapso do sistema de saúde pública no combate à covid aos brasileiros que insistem em abusar das conquistas tecnológicas da medicina para viver 120, 130 anos, seu ex-pupilo Rogério Marinho disse nas fuças dele que pretende chegar àquela idade provecta, ora, quem diria.

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Ainda não foi dado a ninguém saber se o chefão impiedoso mantém o concorrente ao troféu "palpite infeliz" em banho-maria ou no freezer. Mas quanto menos poder o miúdo Guedes exibe, a mais absurdos recorre. É de sua lavra, por exemplo, a boutade cruel de que o filho de seu porteiro teve direito ao Fies, herança do governo petista, mesmo colecionando zeros, nota que na certa seus mestres liberais dariam a essa surreal pirueta de preconceito e burrice. Pois o citado beneficiário lhe contou algo que ele poderia ter aprendido nas aulas de Chicago: o Fies não é uma dádiva, mas um empréstimo a ser pago após o diploma, prática geral no mundo inteiro.

A mais recente, e nunca se saberá se será a última, revela o lado mais imbecil da crueldade da loja de inconveniência do chefão perverso. O guardião do segredo dos cofres da República comemorou a volta ao pleno emprego no dia em que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) anunciou que 14,4 milhões de brasileiros estão na fila por um trabalho no País - o maior contingente desde 2012, quando começou a série histórica. Impossibilitado de realizar o censo de 2020 pelo menos até o próximo governo, a renomada instituição calcula em 6 milhões o total de patrícios que desistiram de procurar trabalho e em 34 milhões o contingente de trabalhadores informais. O melhor motivo para o "professor" Guedes não lastimar esse quadro realista é o de que ele mesmo não sobreviverá da caridade alheia, de que depende um número cada vez maior de miseráveis brasileiros sob o desgoverno no qual ele representa o tal "liberalismo". Ele poderá perder o confortável emprego de cômico do castelo, mas nunca a espetacular renda paga com sangue, suor e lágrimas dos cidadãos do povo.

*Jornalista, poeta e escritor

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