No breve governo João Goulart, em 1963, o Brasil deu início a uma bem-sucedida campanha de imunização contra a varíola. Essa doença contagiosa e fatal, símbolo de desleixo, de falta de saneamento, de pouca higiene e de crônico subdesenvolvimento, havia servido de pretexto para a célebre Revolta da Vacina, no começo do século 20, no Rio de Janeiro. Nela, o negacionismo apresentava suas armas para tornar visível a manifestação popular contra o projeto de reurbanização do prefeito Pereira Passos. Jango caiu após o golpe militar de 1964 e a tal da bexiga lixa foi considerada erradicada do País em 1971, no recrudescimento autoritário da ditadura, à época da euforia do "milagre econômico" e do tricampeonato mundial de 1970, no México, durante o governo Emílio Médici.
A doença, da qual fui imunizado ainda bebê no longínquo sertão do Rio do Peixe, nos confins de Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, em 1951, só seria reconhecida como erradicada no resto do mundo pela Organização Mundial da Saúde (OMS) nove anos depois da erradicação no Brasil. Os epidemiologistas patrícios falam com orgulho da experiência em campanhas de vacinação nestes tristes trópicos, desde 1988, ano da promulgação da Constituição vigente. Então passou a figurar como o maior feito do Sistema Único de Saúde (SUS), cujo desempenho foi muito criticado e é reconhecido na atual pandemia de covid-19. Meio século depois ainda se fala com orgulho da experiência e do êxito das campanhas de vacinação do SUS no Brasil.
No entanto, a mesma Constituição que Ulysses chamava de "cidadã", só que não, e que fundou o sistema público de saúde brasileiro -- em falta nos Estados Unidos, por exemplo, e isso justifica em parte o perrengue do malogro da vacinação anticovid lá -- abriu caminho para nossa dependência na compra de imunizantes. A massificação bem-sucedida da imunização dependeu sempre dos grandes parques industriais de vacinas em dois países muito populosos, China e Índia. Enquanto os fabricantes nacionais de vacinas - Butantan e Fiocruz - foram, na prática, entregues às baratas. Isso porque imunizantes fabricados aqui custam muito caro e os economistas que mandaram no caixa da República nos últimos 32 anos sempre deram preferência a importá-los. Em situações normais, foi feita economia. Na pandemia, ficou comprovado que vacinas são produtos estratégicos, nos quais sempre valeu a pena investir. E mais ainda para evitar a dependência da importação de drogas que salvam vidas. Além do encarecimento brutal delas pela concorrência desesperada na presente pandemia.
Da mesma forma que previu, há um ano, que o colapso do serviço público poderia elevar o número de brasileiros mortos pela covid-19 para 180 mil (e já passamos de 240 mil no momento da leitura deste texto), o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta avisou que o Brasil iria vacinar "aos soluços": chega vacina, é aplicada; para de chegar, a imunização é interrompida. A segunda maior cidade do País, o Rio, chegou ao primeiro soluço. E nenhuma autoridade tem condições de determinar a data em que este será interrompido, até porque ninguém sabe mesmo.
A última pesquisa publicada pela Exame/Ideia dá conta de que 73% dos brasileiros acham que a tarefa primordial do governo Bolsonaro hoje é vacinar o mais rapidamente possível a população, em busca da tal imunização de rebanho. Isso para o País respirar aliviado diante de uma perspectiva real de recuperação da economia, assolada pela pandemia. E 27% acham que o primeiro objetivo do governo é perseguir a recuperação econômica pelo pagamento imediato do auxílio emergencial, que vigorou até dezembro. No entanto, o Ministério da Saúde, ocupado por um intendente de extrema incompetência, não tem a mínima informação a dar à população - animada com os primeiros 5 milhões de doses terem sido aplicadas - sobre quando o primeiro soluço vai ser substituído pelo próximo alívio. Dependentes de insumos que vêm do Oriente, como as especiarias dos tempos dos navegantes do infante Dom Henrique, governadores e prefeitos pressionam o governo federal para fixar suas políticas de abre e fecha o comércio. Tudo o que o Planalto tem a dizer sai da astronômica insensibilidade do secretário-geral da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos. Ele diz, com base apenas na própria ignorância estúpida, que a política de isolamento social malogrou na Itália e, portanto, também fracassa neste Brasil varonil em que só maricas pegam covid.
E o que o chefe dele, Jair Bolsonaro, tem a dizer sobre a segunda prioridade para o público, a esmola prometida para, no mínimo, daqui a três semanas pelos atarantados liberais de Paulo "posto Ipiranga" Guedes, é que se trata de algo "emergencial". Mesmo não havendo notícia de que Sua Insolência jamais tenha sequer tocado num dicionário, ele se agarrou ao sinônimo de precariedade para justificar a sesquipedal arrognância (termo de Roberto Campos, insuspeito de esquerdopatia congênita) sobre o que, no fim das contas, seu desgoverno saiba o que fazer.
Enquanto ninguém lhe conta quais são os significados de empatia e auxílio, o capitão do "aumentem o meu soldo, tá oquêi?" vai tocando seu gado nos encontros sem máscara com medidas que não resolverão a urgência de insumos e doses de vacina, nem centenas de reais que matem a fome dos pobres do Brasil real, mas são apenas perfumaria cara e inócua. Uma é a flexibilização do comércio de armas de fogo, que não aumenta a imunidade do rebanho, mas anima o próprio gado, além de melhorar a contabilidade de milícias, traficantes, fabricantes do ramo e mercadores privados (e certamente liberais) da insegurança pública e privada. A outra, a concessão da autonomia do Banco Central, cujo efeito sobre a economia real é similar ao da cloroquina do capitão do placebo com efeitos colaterais.
· Jornalista, poeta e escritor