Quais são os projetos apresentados pelos vereadores de SP e o que pode ir para frente ou não; veja

Projetos tratam de pautas de costumes, educação financeira nas escolas, multa por invasão de prédios. Constitucionalistas dizem que textos podem esbarrar em legislação federal e direitos fundamentais; vereadores defenderam as propostas

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Foto do author Karina Ferreira
Atualização:

Nas duas primeiras semanas da 19ª Legislatura na Câmara Municipal de São Paulo, dez projetos de lei foram apresentados pelos vereadores recém-empossados e dão o tom de como podem ser os próximos quatro anos na Casa. “Requentando” pautas de grande repercussão nacional, os vereadores propõem trazer os assuntos, a maioria controverso, para o contexto do município.

Especialistas consultados pelo Estadão, avaliam que a estratégia pode ajudar os novos legisladores a “mostrar trabalho” e “fidelizar” o eleitorado. No entanto, advertem que, apesar de versarem sobre temas municipais, os projetos podem esbarrar tanto em direitos civis garantidos pela Constituição quanto em questões que não são de competência do município, o que os tornam inconstitucionais.

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Dos dez projetos apresentados, oito são de autoria de vereadores de PL e União Brasil, enquanto os outros dois foram propostos por vereadores do PSOL. Com exceção de Sonaira Fernandes (PL), que está em seu segundo mandato, os outros proponentes estão estreando na Casa.

Três dos projetos se referem a pautas de costumes relacionadas a gênero — todos de autoria de Lucas Pavanato (PL), o bolsonarista estreante e mais votado das últimas eleições municipais. Outras duas propostas dispõem sobre sanções contra invasores de prédios públicos e proibição de compra de produtos oriundos de terras invadidas.

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Os dois únicos textos apresentados por vereadores de esquerda até o momento, aproveitando pautas recentes que mobilizaram manifestações pelo País, tratam do fim das contratações em escala 6x1 na Prefeitura e da destinação do IPTU pago por milionários à Saúde.

Plenário da Câmara Municipal: vereadores de São Paulo apresentaram dez projetos de lei nas duas primeiras semanas do mandato Foto: Felipe Rau/Estadão

Segundo o cientista político especializado em comportamento legislativo e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Lucio Rennó, os vereadores precisam se ater a atribuições municipais ao propor projetos, independentemente do perfil político.

O risco é deixar pautas relevantes para a cidade de lado, enquanto temas de competência estadual ou federal podem até avançar, mas serão, inevitavelmente, contestadas na Justiça.

“Não adianta nada fazer uma proposta de legislação que não esteja dentro do que cabe a um vereador fazer dentro das delimitações das suas atribuições legais”, disse.

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As propostas de Pavanato, por exemplo, abordam tema semelhante ao que alavancou seu padrinho político, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), à vida pública. Com hiperfoco em questões de gênero, posicionamentos e a própria atuação legislativa do deputado já foram considerados transfóbicas em diversas ocasiões. Agora, o afilhado eleito na capital paulista segue os mesmos passos na apresentação de projetos.

Procurados pelo Estadão, os parlamentares defenderam a constitucionalidade e o interesse do eleitorado em suas propostas. Veja o que dizem os projetos e as discussões que cada tema pode suscitar, segundo especialistas em Direito Constitucional.

PL 5/2025, de Lucas Pavanato (PL)

Resumo: “Estabelece o sexo biológico como o único critério para definição do gênero de competidores em partidas esportivas oficiais do Município de São Paulo.”

O projeto quer garantir a “integridade” nos campeonatos e mantê-los “livre de conflitos derivados de questões ideológicas”. Segundo o professor de Direito Constitucional da Mackenzie e advogado do Fregni Advogados, Flávio de Leão Bastos, o artigo 22 da Constituição Federal estabelece que compete privativamente à União legislar sobre direito civil, que inclui questões relacionadas à cidadania e direitos fundamentais, além de temas como saúde e cultura.

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Ele destaca que, embora a União possa delegar aos Estados legislarem sobre pontos omissos, e os municípios possam tratar de assuntos de interesse local, o projeto proposto por Pavanato envolve direitos civis fundamentais, especialmente os da população LGBTQIA+ e de atletas trans.

Bastos aponta ainda que o esporte, por ser tratado como política pública no artigo 217 da Constituição, demanda uma abordagem uniforme em âmbito nacional. “Não seria cabível que diferentes Estados ou municípios adotassem critérios distintos para a participação de pessoas trans nas modalidades esportivas, pois vivemos sob uma federação baseada na cooperação”, disse. Para o professor, a fragmentação de critérios em âmbito municipal comprometeria a coesão necessária para políticas públicas no esporte, o que poderia gerar potenciais conflitos jurídicos.

PL 7/2025, de Lucas Pavanato (PL)

Resumo: “Proíbe a realização ou custeio de quaisquer tratamentos ou procedimentos hormonais e cirúrgicos para a mudança de gênero em menores de 18 anos no âmbito do Município de São Paulo e dá outras providências.”

Outro projeto de Pavanato visa proibir realização e custeio de qualquer tratamento ou procedimento hormonal e cirúrgico para a mudança de gênero em menores de 18 anos. Na avaliação do professor, a competência de legislar sobre o tema isoladamente existe, já que o município pode ter leis sobre os temas de interesse local, neste caso, envolvendo orçamento, saúde e proteção à criança e ao adolescente.

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“Em situações, por exemplo, em que um menor de 16 ou 17 anos, sofrendo o encargo emocional de não se sentir pertencente ao sexo biológico, qual é o grau de dano que essa pessoa está sofrendo? A partir daí, surge uma obrigação do Estado em apoiar essa pessoa, como a qualquer outra que compõe a população do município. É preciso também analisar se o projeto está motivado por razões ideológicas, religiosas, morais”, afirmou Flávio de Leão Bastos.

PL 8/2025, de Lucas Pavanato (PL)

Resumo: “Estabelece a instalação de banheiro unissex em ambientes coletivos, públicos ou privados, e da outras providências.”

Seguindo a mesma lógica da matéria sobre competições esportivas, o deputado também propõe que o “sexo de nascimento” seja o único critério que permita os cidadãos acessarem banheiros e vestiários em escolas, espaços públicos, comércios e ambientes de trabalho.

O texto prevê que, em ambientes públicos, desde que haja banheiros femininos e masculinos, poderá haver a implementação de um banheiro unissex. Já nos espaços privados que não tenham espaço para os três banheiros, o unissex é facultativo. O vereador também propôs sanções pelo descumprimento da lei: além do pagamento de multa de até 100 salários mínimos (cerca de R$ 150 mil), a Guarda Civil Metropolitana (GCM) poderá usar a força quando “outras formas de mediação e advertência forem insuficientes”.

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Para o doutor em Direito Constitucional e diretor-presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, Paulo Iotti, os três projetos de Pavanato são materialmente inconstitucionais, ou seja, mesmo se fossem aprovados como leis federais, seriam invalidados. “Os projetos partem de espantalhos e desumanizações das pessoas trans e são materialmente inconstitucionais por isso, já que promovem a discriminação arbitrária, a violação da dignidade humana e a liberdades fundamentais das pessoas trans.”

Iotti ressalta que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhece a transfobia como crime de racismo, e que as penas pretendidas no projeto do banheiro são desproporcionais. Bastos concorda com a inconstitucionaldidade, e acrescenta que a Corte já vem considerando discriminatórias leis municipais nesse sentido.

PL 4/2025, de Amanda Vettorazzo (União)

Resumo: “Dispõe sobre aplicação de multa e sanção administrativa a quem praticar invasão contra propriedade pública ou privada no âmbito do Município de São Paulo e dá outras providências.”

Citando o direito do cidadão à propriedade privada, garantido na Constituição, a vereadora Amanda Vettorazzo (União) argumenta que a cidade possui secretaria e política municipal específicas para tratar do tema habitação e, portanto, não há “qualquer necessidade de que invasões sejam realizadas no município”.

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Segundo o projeto, “os pseudomovimentos em momento algum buscam satisfazer qualquer déficit habitacional, pois na verdade o que almejam é pregar o medo da população, que não se sentem seguros com estes terroristas que voltaram a atuar com maior ênfase, pois sabem que não haverá consequências legais”.

Conforme avalia Bastos, o município tem competência para tratar do tema, já que a sanção proposta é administrativa – ou seja, prevê aplicação de multa de R$ 2.950, e não uma pena. Entretanto, se essa multa for utilizada para perseguição a movimentos sociais, será inconstitucional.

Para o doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e professor, Leonardo Quintiliano, tem se tornado comum Estados e municípios criarem sanções administrativas para fatos também sujeitos à responsabilização civil ou penal. Entretanto, pontua que o tema ainda precisa ser melhor debatido no STF, uma vez que, se cada uma das esferas criar multas diferentes, um infrator corre o risco de ter que responder três vezes à mesma infração, além de ser responsabilizado civil e criminalmente.

Ocupação Rio Branco no Largo do Paiçandu, no centro de São Paulo, em 2022 Foto: Werther Santana/Estadão

Já o constitucionalista, doutor e mestre pela USP, Felippe Mendonça, avalia que a lei só poderia estabelecer como infração a ocupação de imóvel que cumpre sua função social, não cabendo para os casos em que ele esteja abandonado e devendo impostos, por exemplo. “Nessa circunstância, o direito à moradia digna do ocupante prevalece, principalmente por ser o próprio município competente para estabelecer as restrições à propriedade abandonada, com o aumento progressivo de IPTU, multa, desapropriação, entre outros”, analisou.

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PL 9/2025, de Sonaira Fernandes (PL)

Resumo: “Proíbe que a Administração Pública direta e indireta compre produtos agrícolas e pecuaristas oriundos de terras invadidas ou de movimentos de invasão de terra, no âmbito do município de São Paulo.”

Sem citar nominalmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a vereadora bolsonarista Sonaira Fernandes propõe que seja proibida a compra de produtos agrícolas produzidos em terras invadidas.

Para Quintiliano, o projeto “nitidamente pretende atingir” o movimento por “via oblíqua”. “Se há um problema com a invasão de terra, já existem mecanismos na legislação nacional para lidar com a questão”, afirmou.

O professor avalia que, apesar de constitucional sob o ponto de vista da competência dos municípios para legislar sobre assuntos de interesse da administração, há divergências do STF sobre leis de iniciativa parlamentar que criem obrigações para a administração pública. Além disso, Quintiliano diz que o maior problema sobre o projeto seria a própria aplicação da lei. “Quando se compram pequenas porções em uma feira pública, em regime de dispensa de licitação, como será feito?”, questionou.

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PL 1/2025, de Luana Alves (PSOL)

Resumo: “Dispõe sobre o acréscimo de faixa de cobrança de IPTU de milionários com destinação do recurso para o Sistema Único de Saúde do Município de São Paulo.”

A proposta da vereadora Luana Alves (PSOL), como analisa Felippe Mendonça, é constitucional no que se refere à criação de uma nova faixa de cobrança do IPTU. Já quanto à destinação específica dos recursos, por ser matéria orçamentária, apresenta vício formal por ter sido proposta por vereador, não pelo prefeito, como prevê a norma constitucional municipal.

Conforme aponta o professor, o que pode esbarrar na Constituição é uma eventual ofensa ao princípio da isonomia, já que a proposta é sobre a vinculação do imposto de apenas uma parcela dos contribuintes, e não de todos.

PL 2/2025, de Amanda Vettorazzo (União)

Resumo: “Altera o art. 3º da Lei Municipal 14.483, a fim permitir a realização de eventos de doação de cães e gatos em praças, ruas, parques e outras áreas públicas do Município de São Paulo.”

Conforme avalia Mendonça, o projeto da vereadora Amanda Vettorazzo, para permitir os eventos de adoção de animais em espaços públicos é constitucional, já que se trata de assunto de interesse local, o que compete aos municípios. O professor ressalta, entretanto, que ele não atende plenamente às exigências da Lei Orgânica do Município e carece de adequações técnicas.

Um exemplo é restringir a necessidade de autorização prévia apenas para eventos em parques, como propõe o texto, que ignora a exigência legal para outros espaços públicos como ruas e praças, pontua Mendonça.

PL 3/2025, de Amanda Vettorazzo (União)

Resumo: “Altera a Lei Cidade Limpa para permitir o uso de painéis luminosos na cidade de São Paulo.”

O projeto visa flexibilizar a Lei da Cidade Limpa implementada em 2007 durante a gestão de Gilberto Kassab (PSD) para regulamentar a publicidade na capital. Segundo a vereadora, permitir anúncios luminosos, além de aumentar a arrecadação, ajudaria na segurança pública ao aumentar a iluminação pela cidade.

Lei Cidade Limpa está em vigor desde 2007 e regulamenta e padroniza a propaganda visual na capital paulista. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Mendonça analisa que a proposta é inconstitucional por vício de finalidade, uma vez que, ao permitir painéis luminosos, o projeto inverte o propósito da lei, que é justamente o de combater a poluição visual e a degradação ambiental.

PL 6/2025, de Lucas Pavanato (PL)

Resumo: “Institui aulas de educação financeira, empreendedorismo e noções básicas de direito extracurricular.”

A proposta de incluir a matéria de educação financeira nas escolas sugerida por Pavanato foi um tema frequentemente debatido durante as eleições municipais do ano passado entre os candidatos a prefeito. Um dos contrapontos era de que, como a Prefeitura tem atribuição somente sobre o ensino fundamental, o conteúdo sugerido é considerado incompatível com a faixa etária dos alunos, segundo uma vertente de educadores.

Para a coordenadora do mestrado em Direito, Justiça e Desenvolvimento do IDP e conselheira do Conselho Nacional de Educação, Monica Sapucaia Machado, discutir educação financeira com a população brasileira é importante, porém, o modelo extracurricular e a falta de menção de um diálogo entre a relação do dinheiro com os direitos fundamentais no projeto são pontos de atenção.

O tema do projeto é de competência municipal, entretanto, já consta em várias estruturas da Lei de Diretrizes de Base e diversas portarias e resoluções da educação brasileira, afirma a professora.

PL 10/2025, de Amanda Paschoal (PSOL)

Resumo: “Estabelece o fim da escala de trabalho 6x1 nas terceirizações, contratações de obras e serviços, e nas celebrações de parcerias públicas ou privadas realizadas pela Administração Pública do município de São Paulo, e dá outras providências.”

Sobre o projeto da vereadora Amanda Paschoal (PSOL), Quintiliano analisa que o texto cria uma interferência na relação entre empresas contratadas e seus empregados, tema já declarado inconstitucional pelo STF em normas estaduais e municipais que impõem limitações gerais para contratação pela administração pública de empresas por fatos não relacionados à sua atividade. Segundo o professor, as decisões da Corte foram fundamentadas no entendimento de que as leis violariam o princípio da igualdade de condições de participação na licitação.

“Embora o projeto não diga isso expressamente, gera o mesmo efeito, ao impedir que a administração contrate empresas que utilizem a jornada de trabalho completa autorizada pela legislação trabalhista”, analisou o professor. Segundo ele, o objetivo do projeto acaba sendo o de implantar uma jornada de trabalho menor, sem alterar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

O que dizem os vereadores sobre os projetos

Os vereadores defenderam a constitucionalidade e o interesse do eleitorado nas propostas. Amanda Paschoal (PSOL) diz que não vê interferência na relação das empresas com os empregados, mas que o projeto da escala 6x1 “busca garantir que a Prefeitura cumpra seu dever, previsto na Lei Orgânica do Município, de proteger a saúde e segurança dos trabalhadores”.

Amanda Vettorazzo (União) argumenta que “não cabe aos movimentos de invasão de propriedades definirem se um imóvel cumpre ou não sua função social” e que, como vereadora, representa “quem também considera estes movimentos como terroristas”. Sobre o projeto dos painéis luminosos, Amanda diz que não há inconstitucionalidade e que projeto se trata de “modernização” da lei.

A vereadora Luana Alves (PSOL) disse que a demanda é de apoiadores de seu mandato e trabalhadores da saúde, e que projeto visa corrigir injustiça. “Queremos que os bilionários paguem mais e ajudem a equilibrar a balança, além de ampliar o financiamento público da saúde e outras áreas sociais.”

Sonaira Fernandes (PL) também afirmou que a proposta foi demandada por seus eleitores, afirmando que em todo o Estado de São Paulo muitos agricultores “são prejudicados com a concorrência desleal daqueles que invadem terras e, delas, tiram proveito”.

Sobre os três projetos que versam sobre pessoas trans, Lucas Pavanato (PL) diz que a avalição dos constitucionalistas é “ridícula” e está “completamente equivocada”. “Se meus projetos promovem segregação, então eles [STF] teriam que punir por transfobia a própria biologia, porque é ela que diferencia sexo masculino do feminino, e coloca diferenças, inclusive, de força física.” Pavanato disse ainda que, mesmo se houver “ativismo judicia”, seguirá com a tramitação para “proteger crianças, mulheres” e “fazer o certo”.

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