Com pouco mais de duas semanas para o primeiro turno, Ricardo Nunes (MDB) e Pablo Marçal (PRTB) intensificaram a disputa pelo eleitorado evangélico, que pode ser decisivo para levar um deles ao segundo turno. As estratégias dos dois candidatos seguem caminhos distintos. Marçal aposta em uma abordagem com um discurso direto ao fiel evangélico, como o encontro virtual que ele marcou para esta segunda-feira, 23. O prefeito, por sua vez, reforçou os acenos às pautas ideológicas e tem procurado se aproximar das principais lideranças evangélicas da cidade.
Fabio Wajngarten, aliado de primeira ordem do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), têm atuado nos bastidores como interlocutores de Nunes junto a líderes evangélicos. Segundo apurou o Estadão, Tarcísio tem recebido representantes desse segmento religioso no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, para convencê-los a apoiar o prefeito. O principal argumento é que apenas Nunes tem chances reais de derrotar o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL) em um eventual segundo turno.
Wajngarten foi peça-chave na aproximação da campanha com o bispo Robson Rodovalho, fundador da Igreja Sara Nossa Terra, e com o pastor Silas Malafaia, de quem é próximo. Na semana passada, Rodovalho organizou um encontro entre Nunes, Tarcísio e diversos pastores na Igreja Bíblica da Paz. A expectativa é que o prefeito intensifique essas conversas para quebrar resistências ao seu nome.
Uma das estratégias adotadas pela campanha de Nunes tem sido usar as redes sociais para defender pautas caras aos evangélicos. Em vídeos, o prefeito se posiciona contra o aborto, a legalização das drogas e a ideologia de gênero nas escolas, num aceno ao eleitorado religioso.
Além de Tarcísio e Wajngarten, Malafaia se tornou, indiretamente, um importante aliado da campanha de Nunes, por justamente ser o mais crítico a Pablo Marçal entre os líderes religiosos. Na última quarta-feira, 18, Malafaia gravou um vídeo dirigido a pastores e líderes evangélicos, chamando Marçal de “herege, um falsificador da palavra, uma intromissão no meio do povo de Deus e uma manipulação”. Ele também ressaltou que Marçal sempre se declarou cristão, e não evangélico: “Não pertence a igreja evangélica nenhuma, passou a ser membro agora na campanha? Pablo Marçal debocha da nossa fé e do que nós, pastores, ensinamos.” Na semana passada, o ex-presidente Jair Bolsonaro compartilhou com aliados um vídeo em tom parecido, no qual Marçal aparece criticando igrejas cristãs.
Para o cientista político Vinicius Valle, que estuda o comportamento eleitoral de grupos religiosos, Malafaia é uma figura influente entre os evangélicos e sua ofensiva pode frear o crescimento de Marçal nesse segmento. “Silas é uma figura midiática importante dentro do cristianismo conservador. Ele pode disputar a atenção dos fiéis que estão em busca de referências políticas e eleitorais fora de suas igrejas”, afirma Valle.
A campanha de Nunes também busca explorar declarações polêmicas de Marçal, como suas críticas ao dízimo e a minimização da figura de Salomão, temas que ressoam de forma negativa entre o público evangélico. Segundo Vinicius Valle, essa tática pode não apenas prejudicar Marçal, mas também ser adotada por outras lideranças religiosas que o enxergam como uma “ameaça” às tradições e influências religiosas estabelecidas.
“Marçal mostra aos fiéis que não é necessária a filiação religiosa para exercer o cristianismo, o que tem preocupado essas lideranças. Mas é uma disputa entre os dois [Nunes e Marçal] que está em aberto, e não há como prever agora quem conseguirá ser mais votado nesse grupo e, consequentemente, quem irá para o segundo turno. Uma coisa está ligada à outra.”
A estratégia de Nunes parece estar rendendo frutos: nas últimas pesquisas do Datafolha, ele apresenta uma tendência de alta entre os evangélicos. Em agosto, o candidato registrou 22% de intenções de voto nesse segmento. No início de setembro, esse número foi para 27% e, apenas uma semana depois, atingiu 29%. Na pesquisa desta quinta-feira, ele aparece com 32%. A margem de erro neste caso é de seis pontos percentuais para mais ou para menos.
Já Marçal, oscilou para baixo no Datafolha: tinha 31% no último levantamento de setembro e agora aparece com 26%, empatado tecnicamente no limite da margem de erro com Nunes.
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Segundo Vinicius Valle, a radicalização e o excesso de agressividade de Pablo Marçal — culminando no episódio da cadeirada no debate da TV Cultura no último domingo, 15 —, somados à estratégia de Nunes, podem explicar a oscilação nas intenções de voto do ex-coach entre o eleitorado evangélico. No entanto, o cientista político ressalta que essa variação é comum em disputas eleitorais acirradas e não acredita em um “derretimento” significativo no apoio a Marçal. “Ele reúne muitos atributos que são valorizados por esse público”, avalia.
Marçal é ‘nativo religioso’
O antropólogo e pesquisador Taylor Aguiar explica que, embora não se identifique formalmente como evangélico, pelo menos até a eleição, Pablo Marçal é visto como um “nativo religioso” por ter frequentado a Igreja Videira, em Goiás, por 20 anos. Recentemente, no sábado, 7, ele esteve na igreja e “pregou” em tom messiânico, convocando os fiéis para uma “guerra espiritual pelo País”. Aguiar destaca ainda que, ao rejeitar uma identidade religiosa específica, Marçal atrai eleitores que se identificam com valores cristãos de forma mais ampla, indo além do tradicional eleitorado evangélico.
“Tudo o que ele fala tem autoridade e é visto como algo autêntico entre esse eleitorado, inclusive entre os evangélicos não ‘igrejarizados’, que atualmente correspondem à maior parcela dessa base evangélica. É o que eu chamo de cristianismo não religioso”, pontua o especialista.
Para Aguiar, Marçal consegue ativar, por meio de um discurso que mescla religião e coaching, características fundamentais dessa identidade evangélica, o que lhe permite mobilizar o segmento mesmo sem o apoio e a intermediação de líderes religiosos. O pesquisador destaca como exemplo a maneira como Marçal se apresenta a esse grupo: um antissistema que, sem depender do Estado, alcançou prosperidade e ascensão social — aspectos valorizados por esse público.
“Família, pautas sociais, morais e prosperidade... uma narrativa que é potencializada pelas redes sociais e chega diretamente aos fiéis, sem precisar de apóstolos ou líderes. Ele consegue ativar essa identidade evangélica diretamente nos fiéis e, por isso, vai bem no segmento”, explica.
A estratégia de Marçal tem sido bem-sucedida em grande parte devido ao modelo adotado no segmento evangélico por meio das chamadas igrejas em células. Nesse formato, o fiel é visto como um “empreendedor da fé”, responsável por formar grupos de louvor em pequenas congregações independentes e desvinculadas de grandes lideranças religiosas. “Tem ainda as igrejas digitais, longe das grandes denominações. É nesse contexto que os discursos de Marçal encontram eco”, afirma o antropólogo Juliano Spyer, fundador do Observatório Evangélico.
A teologia do coaching e o discurso religioso
Marçal combina elementos do coaching com a esfera religiosa, promovendo o que teólogos e especialistas chamam de “Teologia do Coaching”, uma ideologia que prega que, por meio de autoconhecimento, planejamento e trabalho árduo, é possível alcançar prosperidade e sucesso tanto na vida pessoal quanto profissional. Essa é uma versão moderna da Teologia da Prosperidade, amplamente difundida em igrejas evangélicas ao longo do tempo. “É uma versão turbinada da Teologia da Prosperidade com elementos do mundo coach, que Marçal domina como ninguém e já utilizava em suas palestras e mentorias”, afirma Aguiar.
Desde que entrou na disputa pela Prefeitura de São Paulo, Marçal adaptou esses elementos à arena política.
“Ele utiliza no discurso político jargões religiosos presentes na Bíblia, como ‘servir’, ‘honrar’, ‘abençoar’, ‘jejum do crime’ e ‘ideologia de Gênesis’. Mais recentemente, adotou o uso de um anel com a letra M, afirmando que está fazendo uma aliança com o povo de São Paulo. A própria ideia de se colocar como perseguido é uma forma de se conectar com o meio evangélico, onde todo aquele que é levantado por Deus para causar transformação enfrenta a resistência do sistema. Todos esses elementos, somados ao uso de recursos de neurolinguística do mundo do coaching, reforçam essa narrativa, fazendo esse público votar nele”, diz Aguiar.
Apoio de lideranças não garante votos
Para Victor Araújo, cientista político e professor de Política Comparada da Universidade de Reading, no Reino Unido, a estratégia de Ricardo Nunes de se atrelar a lideranças evangélicas não garante uma transferência automática de votos, dado que o grupo evangélico é heterogêneo e seus fiéis possuem convicções próprias. Araújo também aponta que a tática pode ser percebida como oportunista e demagógica, já que Nunes e seu partido não têm um histórico alinhado com os valores centrais para esse segmento.
“Nunes é o candidato não só de grandes lideranças evangélicas como de políticos influentes no meio religioso, como Bolsonaro, mas isso não quer dizer que o fiel esteja sempre a reboque dessas lideranças. Muito pelo contrário, há muitas nuances e heterogeneidade; muitas vezes, as lideranças apontam em uma direção e os fiéis fazem algo completamente diferente. No final das contas, os fiéis votam naqueles com quem mais se identificam, o que não acontece com Nunes”, explica.
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Os efeitos da incumbência de Nunes — o fato de ser o atual prefeito e de ter utilizado a máquina pública para promover políticas voltadas a esse eleitorado — também são ponderados pelo cientista político. Ele argumenta que os evangélicos tendem a valorizar princípios morais e religiosos mais do que questões econômicas, especialmente quando essas estão associadas ao Estado, frequentemente visto como ineficiente e corrupto.
“Por mais paradoxal que seja, o evangélico mais pobre, que precisa de mais ação estatal, tende a se preocupar muito menos com a valência econômica do que os outros evangélicos, de classes mais altas. Veja que não estou falando da prosperidade financeira, em que a pessoa individualmente ‘vence’ economicamente. São coisas diferentes”, explica.