Forças Armadas não apoiaram tortura, diz presidente do STM

Para a ministra Maria Elizabeth Rocha, primeira mulher a presidir o Superior Tribunal Militar, erros cometidos na ditadura não permitem generalizações sobre as Forças Armadas. Ela também afirma que o regime autoritário não foi comandado apenas por militares

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Atualização:

O Superior Tribunal Militar (STM), a corte mais tradicional do Judiciário brasileiro, vai receber em Brasília os principais integrantes da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Eles vêm participar de um seminário, entre os dias 9 e 12 de fevereiro, sobre as relações entre as justiças militares do continente e a defesa dos direitos humanos. A iniciativa, inédita, deve-se sobretudo à presidente interina do STM, ministra Maria Elizabeth Rocha.

Desde que ascendeu ao cargo, em junho do ano passado, para completar o mandato do general Raymundo Cerqueira, ela diz que procura estimular debates e dar mais transparência às atividades da instituição.Segundo a ministra, a sociedade tem uma visão equivocada da corte militar.

 Foto: Estadão

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Em entrevista ao Estado, ao comentar os debates provocados pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade, entregue à presidente Dilma Rousseff em dezembro, ela observa que não se pode esquecer que a ditadura não foi exclusivamente militar e nega que as Forças Armadas tenham apoiado a tortura. Ainda sobre a comissão, a ministra destaca que não era tarefa do grupo apontar responsabilidades, mas esclarecer fatos históricos.

Em relação ao debate sobre uma possível revisão da Lei da Anistia, para punir graves violações de direitos humanos, diz que está dividida entre as posições defendidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Supremo Tribunal Federal (STF). Sobre as restrições à presença de homossexuais nas Forças Armadas, afirma que considera inconstitucional qualquer tipo de restrição baseada na orientação sexual.

Procuradora federal, com doutorado em direito constitucional, Maria Elizabeth foi a primeira mulher a ocupar um cargo no STM, por indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2007. Também foi a primeira a chegar à presidência corte. O mandato interino acaba em março.

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Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

A iniciativa do encontro com a Corte Interamericana foi da senhora?

Foi minha e do vice-presidente da Corte Interamericana, Roberto Caldas. Desde que tomei posse na presidência, em junho do ano passado, tenho tentado promover uma abertura do tribunal para a sociedade. Pouca gente sabe que esse tribunal teve uma atuação muito positiva na época do regime militar, procurando garantir os direitos dos cidadãos. Isso ocorreu também durante a ditadura de Getúlio Vargas.

A Justiça Militar, assim como outras instâncias do Judiciário, não saiu com uma boa imagem no relatório final da Comissão da Verdade. A senhora apoiou a nota divulgada pelo STM com críticas ao relatório?

A nota foi atribuída a mim, mas não é da minha autoria. Eu estava na Índia. De qualquer maneira, quero observar que a nota não atacou a comissão. O objetivo foi tentar esclarecer o papel importante que a Justiça Militar teve durante os anos de chumbo.

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O que achou do relatório?

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A história ainda é muito curta para uma avaliação distanciada e imparcial. De qualquer maneira, acho que o trabalho da comissão e o relatório que produziu foram da maior importância. Em todos os países onde houve ruptura democrática, com regimes ditatoriais, essas comissões têm tido o papel de demonstrar o que aconteceu, para que a história não se repita. O papel das comissões não é apontar culpados ou inocentes.

Muitos militares foram responsabilizados no relatório.

As pessoas se esquecem que aquele foi um regime civil e militar. A ditadura não foi apenas militar. Todos que estudam o que houve em 1964, as articulações do golpe, os documentos da Operação Brother Sam, que estão em Washington, sabem disso. No entanto, quase não se fala no assunto. Esquecem a decisiva participação dos civis, do capital multinacional, da elite orgânica do País. Foi uma articulação para não permitir que o Brasil desse uma guinada para a esquerda e se transformasse numa Cuba continental.

 Foto: Estadão

O relatório não foi justo?

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A questão não é definir se foi justo ou injusto. O ponto fulcral do trabalho da comissão foi colocar o dedo na ferida e mostrar nossas mazelas. A proposta não é perseguir pessoas, mas esclarecer a história. O que eu posso dizer é que as Forças Armadas não são uma instituição de tortura. Elas cometeram erros, como todas as instituições no Brasil, mas isso não permite generalizações. Quem apontar as Forças Armadas como instituição de tortura estará fazendo uma análise histórica incorreta.

A senhora falou que o STM teve uma atuação positiva na ditadura. Por que?

Não falo isso por dever de ofício, mas por dever de consciência: a Justiça Militar teve um papel importantíssimo e ainda desconhecido. Veja o exemplo do habeas corpus. No momento em que a Lei da Segurança Nacional suspendeu a possibilidade de se impetrar habeas corpus para crimes políticos, o que foi no mínimo hilário, porque todo mundo estava impetrando habeas corpus para crimes políticos, o STM criou um sucedâneo de habeas corpus, que foi o direito de petição. Este também foi o único tribunal do País que assinou, em 1977, um verdadeiro manifesto contra a tortura, subscrito por brigadeiros, almirantes e generais. A corte também defendeu o direito de greve. Eu poderia dar vários outros exemplos do papel importantíssimo do STM naquele período.

Mas a Justiça Militar também deu suporte às ações do regime na área da repressão.

Tivemos nossas grandezas e também nossas misérias. Se cometeu erros, e é claro que cometeu, a Justiça Militar também teve grandes acertos, que dignificam sua trajetória e honram a democracia.

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Por outro lado, ministros do STM que se insurgiram contra as determinações do regime foram afastados.O general Peri Bevilacqua foi cassado porque criticou a forma como eram feitos os inquéritos.

Várias pessoas foram perseguidas, cabeças rolaram. Essa é um diferença importante: o Tribunal Militar se manifestou. Quando o Heleno Fragoso, advogado de presos políticos, foi sequestrado e desapareceu, o STM disse que paralisaria o andamento dos processos até que ele reaparecesse. Essa é a parte não dita da história.

E que a senhora quer divulgar.

Sim, para que a sociedade tenha conhecimento de todos os fatos, quando fizer uma análise sobre o trabalho feito aqui. Na ditadura de Vargas, quando o deputado João Mangabeira foi condenado e encarcerado, o advogado dele recorreu ao STM, que concedeu o habeas corpus, garantindo a saída da prisão. O deputado fez então um discurso belíssimo, que está nos anais da Câmara, no qual disse que tinha sido julgado por um tribunal de verdade.

O que está sendo feito para promover essa abertura?

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A Justiça Militar é a mais antiga do Brasil. Remonta à vinda da família imperial, em 1808. Temos um acervo processual preciosíssimo. Estamos tentando digitalizar esse material, para colocá-lo à disposição de toda a sociedade.

A senhora tem um cunhado, Paulo Costa Ribeiro Bastos, que faz parte da lista de desaparecidos políticos na ditadura. Como encara isso?

Ele é irmão do meu marido, que é general, filho de general. Isso mostra que as vítimas não são escolhidas na ditadura. O autoritarismo acaba atingindo todos nós. O meu pai era comunista e foi um dos fundadores do PDT, mas não chegou a ser perseguido.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos está desembarcando no Brasil em um momento delicado, por causa da Lei da Anistia. Segundo a corte, as graves violações de direitos humanos, como a tortura, não podem ser anistiadas. Como vê isso?

A ideia é promover a troca de ideias. Não vai caber a nós a palavra final no caso Gomes Lundgren (o caso julgado na corte sobre a Guerrilha do Araguaia, que deu origem aos questionamentos). Isso é da competência do STF.

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A senhora é favorável à revisão da Lei da Anistia, para que os torturadores sejam responsabilizados e punidos?

Fico numa posição delicada, porque qualquer afirmativa pode ser vista como uma crítica ao STF ou à Corte. De um lado eu digo que existem crimes de lesa humanidade, como a tortura, que deveriam ser apreciados. Por outro lado, a Lei da Anistia foi um processo onde se acomodaram tensões sociais. Ela garantiu a transição.

Como encara a presença de homossexuais nas Forças Armadas?

Não sou militar. Da minha parte, não faço restrições. Acho a discriminação por orientação sexual intolerável, injustificável e inconstitucional.

Já julgou algum caso envolvendo direitos de homossexuais?

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Sim. Colhi uma vitória relevante no caso de uma servidora que queria incluir a companheira no plano de saúde. Muito antes do STF se manifestar sobre a questão da união afetiva, eu dei um voto favorável e fui acompanhada por todo o tribunal, por generais, almirantes e brigadeiros. Entenderam que era um direito devido.

E quanto à questão das mulheres?

Uma das conferencistas convidadas para o nosso encontro nos próximos dias vai falar sobre a violência contra as mulheres nas forças armadas de diferentes países. Nos Estados Unidos, a justiça militar está voltada quase inteiramente para o julgamento de casos de violência sexual contra homens e mulheres - especialmente mulheres. Essa é uma questão que envolve direitos humanos e na qual a conscientização é sempre importante.

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Para quem se interessar, a biografia da ministra Maria Elizabeth está disponível no site do STM.

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