Akin, atualmente na Câmara, faz parte do grupo parlamentar que, em nome de preceitos bíblicos, se opõe ferrenhamente qualquer tipo de aborto. No domingo, 19, ao responder a uma pergunta, num programa de TV, sobre o aborto em caso de estupro, respondeu: "Pelo que eu entendo dos médicos, acho que o corpo da mulher tem um jeito de fechar tudo no caso de estupros legítimos".
Em outras palavras, segundo Akin e suas fontes médicas, mulher estuprada não engravida porque seu corpo reage naturalmente. Alguma evidência científica disso? Nenhuma. Estudos médicos indicam o contrário. Só nos Estados Unidos, a terra do candidato, são registrados a cada ano milhares de casos de gravidez decorrente de estupro, de acordo com pesquisa realizada pela Medical University, da Carolina do Sul.
A declaração do parlamentar demonstrou insensibilidade diante do drama dessas mulheres e expôs, uma vez mais, o truque de desqualificação dos argumentos das feministas. No fundo, lança suspeitas sobre mulheres que recorrem ao aborto para interromper a gravidez resulante do estupro. Ora, se esse tipo de gravidez não ocorre, segundo os médicos consultados por Akin, esse tipo aborto não tem sentido.
Não é a primeira vez que se ouve tal tipo de conversa. Já se disse, por exemplo, que ninguém consegue estuprar uma mulher quando ela não quer. "Esse tipo de conversa, acredito, tem o objetivo de envergonhar as mulheres", observou a presidente da Organização Nacional para as Mulheres, Terry O''Neil, uma das muitas vozes que se ergueram contra o candidato.
Foram tantas vozes que Akin recuou e pediu desculpas. Mas não suspendeu sua candidatura. Disse que se preocupa acima de tudo com a proteção da família e da vida, mesmo nos casos de violência sexual.
Voltando ao início do texto, o que pode parecer folclórico é um debate que afeta a vida privada de milhões de pessoas e que parece se renovar, com virulência cada vez maior, a cada período eleitoral, tanto lá quanto aqui no Brasil. A esse propósito, merece ser lido por quem se interessa pelo assunto um ensaio escrito em 1979 pelo polêmico e provocador escritor Gore Vidal, com o título Sexo É Política.
O ensaio, publicado na edição de janeiro da revista Playboy, resultou da constatação da crescente influência de grupos religiosos fundamentalistas nos debates eleitorais, com ênfase nas questões sexuais e de gênero. É um texto longo no qual ele discute, entre outras coisas, a questão do controle das mulheres e a perseguição aos homossexuais ao longo da história. Lá pelas tantas, afirma: "Hoje, quase três mil anos depois que Moisés desceu do Sinai, as mulheres estão chegando perto de terem igualdade com os homens dos Estados Unidos. Mas a guerra contra a igualdade da mulher continua; no momento, está sendo travada em nome da família."
Segundo o ensaísta, em cada período eleitoral existem botões quentes que os políticos sabem distinguir e apertar. O combate ao comunismo, à ameaça cubana, ao terrorismo islâmico, ao liberalismo econômico. Na época em que escreveu o artigo, quando se discutia a emenda constitucional dos direitos iguais, era a família que estaria ameaçada. Na opinião dos conservadores, para que fosse fortalecida, as mulheres não podiam ter direitos iguais aos dos homens: "Nem no mercado de trabalho nem relativamente a seus próprios corpos (não abortarás)".
Pelo mesmo raciocínio, a homossexualidade também deveria ser combatida. Segundo Vidal, quando se aperta o botão quente, quando se põe o pecado e as citações bíblicas em primeiro plano, todos os outros problemas, os problemas reais do País, da cidades, das comunidades, ficam relegados ao limbo. "Falar contra o pecado é uma boa política", escreveu. "Como é muito difícil que alguém chegue a questionar abertamente o valor da família nas questões humanas, qualquer grupo que deseje salvar essa instituição supostamente ameaçada recebe apoio entusiástico."
Vida gostava do papel de iconoclasta. É interessante notar, no entanto, como ele previu que o sexo podia se tornar o cerne da política: "Em breve, de uma maneira ou de outra, cada político irá, por assim dizer, meter as mãos no ato."
O texto foi traduzido para o português e publicado em 1987, na coletânea De Fato e de Ficção (esgotada), da Companhia das Letras, com o título original. Embora tenha se tornado datado sob vários aspectos, de maneira geral permanece atual. Quer um exemplo? Dê uma zapeada no horário gratuito eleitoral. No caso de muitos políticos, você não entenderá lhufas de suas propostas para a cidade nem de suas opiniões sobre corrupção, mas saberá que ele e seu partido são a favor da família e, por tabela, contra o aborto, contra a homossexualidade, contra a igualdade de gênero.
Vidal, que morreu no dia 31 de julho deste ano, faz falta. Se estivesse vivo, chamaria Akin de "zelote da nova direita".
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