Com a virada do ano, se renovam as esperanças de que o Brasil consiga aprovar uma lei de regulação das plataformas digitais. Essa tarefa, um dos grandes desafios da atualidade, vem sendo postergada pelo Congresso Nacional há pelo menos quatro anos, desde o nascimento do projeto de lei 2630, conhecido como PL das Fake News, em 2020, no Senado Federal.
Apesar da queda de pressão do 2630, o Brasil obteve conquistas importantes em 2024. Duas comissões do Senado aprovaram, em tramitação terminativa, projetos que buscam regular o desenvolvimento e uso de tecnologias de inteligência artificial e a proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital. A votação favorável desses dois textos é apenas um primeiro passo, já que ainda dependem de aprovação na Câmara dos Deputados. Ainda assim, representa vitória, e é indicativo de que é possível encontrar denominadores comuns, mesmo em universos pautados por atores e interesses tão diversos como os aqui mencionados.

São muitas as razões que levam a crer que avançar com a regulação é, além de necessário, urgente. As plataformas inundam o exercício da vida política, social, cultural e profissional das pessoas. Serviços com tamanha importância e abrangência precisam ser balizados por normas que deem conta da sua complexidade e natureza dinâmica. Além disso, é descabida a energia que o poder público gasta apagando incêndios iniciados por conta da falta de regramentos mínimos para a atuação das big techs no Brasil. A circulação de discursos violentos e predatórios às instituições democráticas, postagens desinformativas sobre serviços e poderes públicos e até incitações a comportamentos violentos por jovens são apenas exemplos do que surge e demanda esforços imediatos do governo.
Pacificada a compreensão de que a regulação é parada obrigatória, a questão que resiste diz respeito ao “como”. Quais são as avenidas que nos levam à construção de uma navegação mais saudável, mitigando riscos e dando conta das particularidades do contexto brasileiro?
Em primeiro lugar, a defesa da liberdade de expressão é irrenunciável. Não como um conceito abstrato, mas como um direito consagrado pela Constituição. Deve, portanto, funcionar como guia e fio condutor para toda e qualquer proposta regulatória. Fundamental pontuar que, para que a liberdade de expressão seja plenamente exercida, é necessário que seja conjugada com contrapesos que previnam discursos violentos, cujos efeitos atingem sobretudo os direitos de grupos historicamente minorizados da população.
O texto regulatório também deve ser consciente dos diferentes tamanhos e naturezas dos provedores de aplicações de internet. As enciclopédias online oferecem um serviço, os marketplaces outro, e as redes sociais, um terceiro. Se um projeto se propõe a abarcar todas ou algumas dessas funções, isso deve estar claro, assim como as obrigações devem ser proporcionais à quantidade de usuários e ao tamanho da receita de cada empresa.
Além disso, é essencial que o projeto dialogue com os marcos normativos e conceitos já existentes no ordenamento brasileiro, de maneira a compor um cenário regulatório coeso. São exemplos o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor. Estes diplomas trazem um léxico já estabelecido e reconhecido, inclusive em sua aplicação prática pelo judiciário.
De um ponto de vista programático, a regulação tem o condão de estabelecer obrigações concretas para os provedores de aplicações. Alguns exemplos são o estabelecimento de medidas preventivas para mitigar riscos, por exemplo, advindos da difusão de conteúdos criminosos; a responsabilização civil por conteúdos patrocinados; o desenvolvimento de mecanismos para combater fraudes online; e a publicação de termos de uso em português, redigidos de forma clara e adaptados ao contexto brasileiro. Contempla, ainda, deveres de transparência, tais como a publicação de relatórios sobre impactos de novos serviços aos direitos humanos no Brasil e o fornecimento de acesso a dados sobre seus sistemas automatizados de moderação de conteúdo.
A regulação não nasce como um ponto final. Pelo contrário. Apenas a vida prática dessas normas nos farão compreender suas fortalezas e debilidades. É vital, portanto, que essa série de obrigações seja constantemente reavaliada e redimensionada. Para tanto, qualquer projeto sério precisa prever uma autoridade que supervisione o seu próprio cumprimento. Esse órgão deve deter autonomia e poder de polícia para tomar decisões e aplicar sanções em casos de violações, bem como ser composto de forma multissetorial, contemplando as diferentes visões que as complexas cadeias dos serviços digitais demandam.
Com o recuo da autorregulação observado nos últimos tempos, somado à resistência das plataformas em oferecer respostas sob medida para os desafios que seus serviços apresentam em diferentes contextos, resta ao Estado o dever de se organizar para botar de pé um arcabouço regulatório que proteja direitos dos usuários e oriente a atuação das empresas.
O Brasil tem competência institucional para tanto: deputados e senadores interessados em relatar a matéria em projetos de lei, diferentes órgãos do governo que se debruçam sobre a matéria, e uma sociedade civil consolidada com expertise técnica e conhecimento acumulado. Além disso, o País é um dos maiores mercados de usuários de redes sociais do mundo, e pioneiro nas discussões regulatórias na região. O trabalho demandará coragem e coordenação do poder público e do Congresso Nacional. Espera-se que a virada do ano não seja apenas a renovação das esperanças, e sim, a retomada dos trabalhos do governo e das casas legislativas em torno da aprovação de um texto responsável e seguro para o Brasil.