99 e Uber ‘usam desobediência estratégica’ e apoio popular como pressão política, diz especialista

Segundo Nina Desgranges, antropóloga e pesquisadora do ITS Rio, aceitação social é a estratégia por trás da disposição da plataforma em peitar tanto a gestão municipal quanto os embates no judiciário

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Foto do author Caio Possati
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Foto: Divulgação/Jangada Consultoria de Comunicação
Entrevista comNina DesgrangesAntropóloga e pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio)

A insistência da 99 em manter a oferta do serviço de mototáxi na capital paulista, contrariando um decreto municipal de 2023 que proíbe o modal, levanta dúvidas sobre os motivos que levam a empresa a enfrentar a Prefeitura. A gestão Ricardo Nunes (MDB) reagiu com aumento de fiscalizações, multas e ações na Justiça.

Nesta quarta-feira, 22, um lado da batalha ganhou outro adepto. Após a Justiça negar o pedido de Nunes para multar a 99 por desrespeitar o decreto, a Uber anunciou a retomada de seu serviço de mototáxi.

Em entrevista ao Estadão, Nina Desgranges, a antropóloga e pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio), que estuda o impacto e o futuro da tecnologia, avalia que as empresas dessa área, no Brasil, têm apostado na adesão dos usuários como instrumento de pressão contra o poder público para obter a regularização.

A antropóloga ainda pondera a necessidade de o poder público observar o equilíbrio entre a oportunidade de mercado, emprego e as questões de segurança na criação de regras para serviços desse tipo.

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Veja os principais trechos da entrevista:

Prefeitura intensifica fiscalização de serviço de mototáxi em SP. Foto: Alex Silva/Estadão

Qual a lógica da estratégia que está sendo adotada pela 99?

A estratégia parece estar ancorada na tentativa de forçar uma discussão pública e, possivelmente, no futuro, a regulamentação desse serviço. A empresa parece apostar na adesão dos usuários, na aceitação social para que a Prefeitura de São Paulo revise essa posição. (A 99) Usa a legislação federal (Política Nacional de Mobilidade, a 12.587/2012) para legitimar a operação, mesmo que em oposição ao decreto municipal que vai proibir. De alguma forma, eles tentam esse ato consumado incentivando o uso massivo do serviço para ter apoio popular e pressionar a Prefeitura e autoridades a discutir essa regularização.

Há semelhança entre o que a 99 está fazendo com a implantação da Uber, em 2015?

Enxergo, sim, paralelos com o que a Uber utilizou em 2015, na prefeitura do (Fernando) Haddad (PT). As duas empresas apostaram, de alguma maneira, nesse modelo de desobediência estratégica para abrir novos mercados utilizando apoio popular, como ferramenta de pressão política.

Mas, ao mesmo tempo, existem algumas diferenças importantes. A Uber focava em um público de classe média, em serviços com custo benefício, batendo de frente com o táxi, que já existia em São Paulo. E a 99 está mirando em um público da periferia, em que o custo é um fator decisivo.

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Além, claro, de ser um transporte por moto, e não por carro. Isso apresenta desafios específicos, como um alto índice de acidentes, que vão tornar a discussão sobre a segurança viária muito central para o debate.

Na sua avaliação, não é arriscado a 99 passar por cima do decreto municipal e oferecer um serviço que pode provocar mais de acidentes?

É complicado. O desafio é justamente encontrar o equilíbrio entre oportunidades e segurança. O serviço de motos por aplicativo, de fato, reduz os custos de mobilidade para uma parcela dos consumidores e, de fato, cria oportunidades de renda para os trabalhadores.

Mas, ao mesmo tempo, não podemos ignorar os dados que são alarmantes sobre o índice de acidentes com motos no Brasil. As motos saltaram de pouco mais de 7 milhões, em 2004, para 35 milhões até o ano passado. E pesquisas de entidades médicas mostram que mais de 50% dos motociclistas usam as motos para trabalho. Não podemos ver o aumento do número de acidentes desconexa desses dados, sobretudo com a chegada dos aplicativos de entrega.

Isso reforça a urgência de diálogo multissetorial, entre empresas, poder público, trabalhadores e sociedade para equilibrar a acessibilidade, segurança viária e condições dignas de trabalhadores. Porque, afinal, falamos da exposição dos condutores e também dos passageiros a esses riscos.

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Quais ferramentas a Prefeitura de São Paulo tem para tentar barrar esse serviço? Ela poderia suspender aquele decreto e criar um novo?

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Além das apreensões e multas, a Prefeitura pode intensificar a articulação jurídica, buscando decisões em instâncias superiores. Também pode negociar com as empresas para limitar o serviço em áreas específicas, como já acontece com a exclusão do centro expandido, e reforçar a fiscalização para pressionar motociclistas. Outra possibilidade seria propor alterações no decreto vigente para torná-lo mais robusto contra contestações legais.

Um novo decreto poderia incluir disposições que fortaleçam sua posição contra o serviço ou até mesmo trazer regras específicas para o transporte por motos, como exigências de segurança, regulamentação dos motoristas e áreas permitidas de operação, reforçando a posição da Prefeitura sem necessariamente proibir o serviço.

Você falou de encontrar o equilíbrio entre oportunidades e segurança. Qual medida prática poderia ser pensada para encontrar esse equilíbrio?

Não sei se consigo dar a resposta de R$ 1 milhão. Sozinha, não sou capaz de responder, porque essa resposta vem desse diálogo. Talvez, seja pensar a moto como esse modal para curtas distâncias. Por exemplo: para levar a pessoa de casa a um ponto de ônibus ou estação de trem ou metrô.

Não dá pra pensar nesse equilíbrio sem regulamentação do serviço, que considere a voz dos trabalhadores, da sociedade civil e do setor privado para construir a legislação, que traga a segurança dos trabalhadores e dos consumidores, mas também permita a inovação tecnológica e o desenvolvimento econômico.

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A experiência da Uber mostra que a Prefeitura não foi capaz de barrar o serviço. A empresa está aí até hoje. A 99Moto já está operando em outros municípios do País. Não sei se a Prefeitura será capaz de frear esse serviço. É pensar mesmo em soluções.

Isso pode abrir caminhos para que outras empresas de tecnologia, interessadas em oferecer um serviço no município, pratiquem essa mesma desobediência estratégica que você citou?

Isso pode, sim, virar tendência de alguma forma. Por isso, quando falamos de plataformas e aplicativos - que não é algo novo, mas ainda apresenta certa novidade -, se faz necessária a discussão a nível federal. Quando isso é colocado a nível nacional, tira um pouco o poder das empresas de tentar usar essas estratégias com as prefeituras.

Não é só São Paulo que sofre com esse problema. Cada município tem as suas questões. No Rio de Janeiro, por exemplo, o mototáxi é forte, mas comandado por poderes não oficiais, como tráfico, milícias, o que coloca a segurança desses motoristas por aplicativo em risco. Já há casos de violência contra esses trabalhadores.

A regulação não só é necessária a nível das cidades, com os municípios pensando nas suas especificidades de deslocamento urbano, mas também a nível federal, quando falamos das transformações do mundo do trabalho.

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Como é que o governo federal pode olhar para a pauta?

O governo federal pode assumir um papel de liderança ao promover um debate nacional sobre a regulamentação do transporte por motocicletas, revisando a legislação para incluir requisitos específicos sobre segurança, condições de trabalho, fiscalização e a relação com os aplicativos. Além disso, pode promover diálogo intergovernamental para harmonizar as regras entre os Estados e municípios, evitando conflitos como o que ocorre em São Paulo.

Com a recente e decisão da Justiça e o início das operações do Uber Moto, para isso pode caminhar?

Essa história pode caminhar em duas direções principais: o fortalecimento do embate entre a 99 e a Prefeitura, com ações legais e medidas administrativas para interromper o serviço, ou a abertura de diálogo para discutir a regulamentação do transporte de passageiros por motocicletas na cidade. O cenário está se tornando mais complexo com a entrada da Uber Moto. O desfecho dependerá da pressão pública, da postura política da gestão municipal e do impacto que o serviço terá na opinião pública, especialmente entre usuários e trabalhadores diretamente afetados.

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O cenário aponta para um confronto prolongado entre as empresas e a Prefeitura, mas também para um amadurecimento do debate público. A entrada da Uber sugere que o serviço veio para ficar, especialmente nas periferias onde há mais demanda. O aumento do uso de motocicletas no Brasil, os índices crescentes de acidentes e a pressão por soluções acessíveis de transporte indicam que esse é um problema que precisa ser enfrentado de forma abrangente. A tendência é que o tema caminhe para uma regulamentação que busque equilibrar as demandas de acessibilidade, segurança e direitos trabalhistas, com a participação de diferentes níveis de governo e da sociedade civil.

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