
A Justiça mandou suspender, em 27 de janeiro, o serviço de mototáxi em São Paulo, atendendo a pedido da Prefeitura, que alegava descumprimento do decreto municipal de 2023 que veda a modalidade. Mas, para Luciano Benetti Timm, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), a proibição contraria leis federais, incluindo a de livre iniciativa de mercado.
Artigo produzido para o Instituto Millenium, de autoria de Timm e Marcelo Justus, professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp), defende que o serviço não seja proibido na capital, mas sim regulamentado com foco em diminuir eventuais riscos ao trânsito e à saúde pública. O paper, ao qual o Estadão teve acesso, será publicado nesta terça-feira, 18.
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“É verdade que, pela Constituição, o município tem competência residual de interesse local, mas isso precisa estar bem fundamentado (e não está)”, afirma Timm, que também foi secretário nacional do Consumidor do Ministério da Justiça, em entrevista ao Estadão. “O princípio todo da ordem econômica da Constituição, ao qual, evidentemente, os decretos municipais têm de seguir, são embasados na livre iniciativa.”
Segundo ele, são inegáveis os benefícios da liberação da atividade à mobilidade urbana e à geração de renda, especialmente para populações de baixa renda que vivem na periferia. A pesquisa aponta os moradores de bairros pobres como o principal público da atividade, tanto do ponto de vista de passageiros quanto dos motoristas.

O principal argumento da Prefeitura para proibir o modelo é de que a liberação do serviço aumentaria as mortes no trânsito, já que motociclistas são as principais vítimas de acidentes, com consequente sobrecarga no sistema de saúde.
O prefeito Ricardo Nunes (MDB) disse que “as empresas só estão pensando no lucro” e afirmou que a realidade da capital paulista é diferente de outros municípios, cujo trânsito seria mais calmo. Na semana passada, Associação Paulista de Medicina também publicou alerta sobre o risco de alta de acidentes.
A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), por sua vez, contesta os argumentos. Afirma que o “serviço oferecido é uma atividade privada, legal”, regida pela Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/2012) e sustentada pela Lei 13.640, que regulamenta o transporte remunerado privado individual de passageiros.
“Deve-se observar que os cerca de 800 mil motociclistas cadastrados no Brasil nas três maiores empresas do setor (99, iFood e Uber) representam apenas 2,3% da frota nacional de 34,2 milhões de motocicletas, motonetas e ciclomotores, segundo dados da Secretaria Nacional de Trânsito”, afirma a Amobitec. As empresas também dizem ter mecanismos de segurança de passageiros e motociclistas.
Levantamento feito pelo Instituto Locomotiva aponta que 97% dos motociclistas de app da cidade acreditam que a Prefeitura deveria permitir o mototáxi. E, para 83% dos entrevistados, os governantes deveriam ouvi-los sobre a oferta do serviço.
“Nessas situações (em que há conflitos de interesse), as escolhas não são social e economicamente ótimas. Portanto, compreende-se que a transparência no processo de tomada de decisão e o debate público são elementos relevantes para uma regulamentação eficiente”, diz o artigo do Instituto Millenium.
Confira os principais trechos da entrevista com Luciano Benetti Timm:
O mototáxi já existe em outras cidades, mas em São Paulo há o decreto municipal que proíbe a atividade. As empresas questionam a validade do decreto, sob argumento de que uma lei federal regulamenta a atividade nacionalmente. Afinal, São Paulo tem poder para barrar por definitivo as empresas privadas de oferecer o mototáxi?
Na minha visão, a atuação do município confronta a lei federal, que trata da política nacional. Não podemos ter uma federação absolutamente descoordenada, com um município estabelecendo diretrizes que vão de encontro com a política nacional. É verdade que, pela Constituição, o município tem competência residual de interesse local, mas isso precisa estar bem fundamentado, inclusive do ponto de vista empírico, de dados, porque o princípio todo da ordem econômica da Constituição - ao qual, evidentemente, os decretos municipais têm de seguir - é embasado na livre iniciativa, no artigo 170.
A intervenção, a restrição, num mercado como esse, de transporte de passageiros por aplicativo de motocicleta, precisa estar bem fundamentada. E é isso que carece (o pedido de proibição da Prefeitura), diante do que levantamos de dados.
Além da Constituição, tem uma lei federal que deve ser atendida no âmbito local, que é a Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/19). É mais um elemento que garante a não intervenção. E também temos a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, que é uma lei federal que também obriga toda a administração pública, inclusive a municipal, a ponderar os efeitos da sua regulação, da intervenção que está fazendo, no mercado.
No paper, vocês argumentam contra a proibição e a favor de um marco regulatório que mitigue os riscos da atividade. Como isso funcionaria? Quais as possíveis abordagens regulatórias?
O que encontramos, do ponto de vista de Direito, comparando diferentes abordagens municipais, é que algumas prefeituras silenciam e, ao silenciar, elas admitem (a atividade). Mas a coisa fica mais no aspecto da segurança jurídica (não tomam medidas reguladoras para que haja segurança factual na atividade).
Também há municípios que chegam a disciplinar, estabelecendo requisitos para essa atividade, ligados à habilitação, regras para segurança, inclusive a dos motoristas. E outros como São Paulo, que infelizmente tomaram o caminho da proibição, o que seria o pior caminho, porque não impede que aconteça - isso já está acontecendo. Nesse caso, talvez a insegurança seja jurídica e factual - para o passageiro, é maior.
Encontramos dados que mostram que muitas pessoas usam esse serviço. Esses aplicativos viabilizam o trabalho para pessoas que querem prestar essa atividade econômica. É uma alternativa de renda e, ao ser legalizada, garante tributação.
Ao mesmo tempo, para os consumidores, os usuários, é algo mais mais seguro, porque estabelece inclusive todo o marco, toda a legislação para o consumidor. Parece ser um caminho mais adequado esse de regular e, ao regular, estabelecer requisitos de segurança e operação dessas empresas.
Qual deve ser o papel da Prefeitura nessa história?
A Prefeitura precisa mudar a sua postura e regular permitindo o funcionamento dessa atividade econômica. Ao permitir, toda a experiência, a regulação e os entendimentos jurisdicionais que há para o transporte de quatro rodas possam eventualmente ser aplicados aqui.
Não vejo algo mais relevante do que simplesmente disciplinar e permitir o funcionamento dentro dessa atividade no marco legal que já existe, com a jurisprudência e os entendimentos já consolidados para outras atividades análogas.
E o papel das empresas? Elas deveriam oferecer contrapartida, vistos os possíveis prejuízos causados pela atividade?
Quando as empresas oferecem um serviço, vão responder por esse serviço dentro da forma que já respondem em outras atividades. Quer dizer: são empresas já em atividade no Brasil e que prestam outros serviços análogos. Não veria motivo para que tivessem de dar uma contrapartida.
Considera que há mais benefícios do que malefícios na adoção do mototáxi?
Toda política tem de fazer essa análise de custo-benefício. Dizer que não tem ponto negativo, que tudo é bom ou que tudo é ruim, de fato, não é o melhor caminho. Pela experiência internacional, toda regulação é uma análise de custo-benefício.
É claro que tem custo social. Os acidentes não são desejáveis, evidentemente tem de ter essa sensibilidade. Mas do outro lado, temos os benefícios que devem ser ponderados com a regulação e, consequentemente com a permissão dessa atividade econômica.
Temos a possibilidade do exercício de um trabalho para uma mão de obra menos especializada, cujas alternativas também não são tantas. Estamos em um momento no País de aquecimento da atividade econômica. Mas, na pandemia, vimos que não é sempre assim. É bom ter mais opções.
Vi uma matéria do Estadão sobre as cinco profissões menos desejáveis: uma delas era a de motorista de ônibus, e muitos migraram para motorista de aplicativo. Por vezes, o Ministério Público do Trabalho entende que essa atividade econômica é precária, mas se esquece de perguntar para as pessoas o que elas, na média, preferem.
Essa liberação dá oportunidade de trabalho. Muita gente que faz essa atividade não faz como uma carreira. É uma atividade de rápida entrada e saída, flexível. Não é desprezível o número de pessoas que complementa renda com isso. Tem uma série de benefícios do ponto de oferta de mercado de trabalho.
Do lado da demanda, quem usa são pessoas que usam transporte público, que moram mais longe, muitas vezes em regiões menos favorecidas e com alta criminalidade. Alguns dados sugerem que os crimes diminuem porque as pessoas ficam menos expostas na rua - gente que sai muito cedo, às vezes quando está escuro ainda. Acaba atendendo pessoas que não têm oferta de serviços dessa natureza ou outros que complementem o serviço de transporte público.
Quem não pega transporte coletivo quer dizer para elas o que precisam fazer. É o nosso paternalismo, que é incorrigível.
Do ponto de vista econômico, os prestadores passam a pagar algum tipo de imposto. É um tratamento tributário beneficiado, mas paga. Além disso, há uma circulação de mais dinheiro, porque essas pessoas geram atividades.