
A exposição no MuBE tem duas partes. Anteriormente [aqui] falei sobre a porção externa, a exposição de esculturas em grande formato postas ao ar livre. Agora falo da exposição de dentro do museu.
Diferente daquilo que está debaixo da luz do sol, no jardim mais acima, o passeio interno começa com uma escultura reflexiva lembrando o que vimos em superfícies foscas lá fora. Logo depois, é apresentada uma série de pinturas. O texto que introduz a mostra explica a lógica expositiva: das menos para as mais densas, com maior concentração de tinta, basicamente tinta preta. O que o texto não nos conta é que ele mesmo, o próprio texto, está tão intrinsecamente vinculado ao conjunto, que acaba sendo a primeira peça, a mais rala, fios de letras sobre seu fundo monocromático. Se observarmos as letras, feitas de linhas, é a peça mais rarefeita de todas; se observarmos o fundo, é a mais densa, vinculada à última e, portanto, amarra o conjunto numa construção circular.
As pinturas do Amílcar são ímpares. Inicialmente, ele pintava interferindo com linhas precisas, linhas que dobravam virtualmente os planos construídos sobre a tela. Com o tempo, o gesto foi tomando conta de seus quadros e, se o mesmo gesto unia forma e imagem, apresentados pelos meios escultura e pintura, em sua escultura a razão prevalece. Suas pinturas são fruto do instinto, inconsciente, irreprimido, pré-verbal, julgado a posteriori pela razão que decreta a autonomia da peça e independência de quem a fez.
Um vídeo que vi na exposição do Amílcar em Porto Alegre, durante a 5ª Bienal do Mercosul, mostrava-o citando o parâmetro grego de justo, belo e verdadeiro. Tudo o que é justo e verdadeiro é belo, tudo o que é belo e justo é verdadeiro, tudo o que é belo e verdadeiro é justo. Desta triangulação vem a justeza de sua obra, um autor que se descobriu nas artes quando, ainda profissional do direito, ingressou num curso livre de desenho com o mestre Alberto Guignard, pai artístico de toda uma geração notável.
A pintura é dobrada como suas chapas, mas é dobrada por um leão e não por um engenheiro. O autor trabalhava com brochas grandes como vassouras que, embebidas em tinta, moviam-se sobre a tela crua. O movimento projeta as manchas no espaço, em abstração geométrica expressiva, expressionista, muitas vezes complementada por preenchimento bem localizado e de contornos claros, oposição complementar ao gesto radical.
É muito interessante ver suas telas ordenadas por densidade e não cronologicamente. É isso o que ela é: registro pulsante que transcendeu o tempo cronológico. Para os gregos, haviam dois parâmetros te tempo. Cronos era o tempo dos homens, quantificável, tempo ordenador e artificial, dado por alguma forma de medição que o transforma em imagem legível para ser comunicado mecanicamente. Kairós é o deus do tempo descontínuo, o tempo que habita a ordem natural, não linear, o tempo das grandes obras de arte, aquele que une Rembrandt e Amílcar pelo modo como ambos se movimentam em torno da tela.
As manchas do Amílcar viram linhas, falham, recuam e avançam, criando uma profundidade independente do plano perspéctico. Amílcar de Castro, como outros neoconcretos, trabalham com clareza sobre um espaço virtual livre da gravidade e ali distorcem seus planos geométricos.
A exposição interna, entretanto, não é feita só de pinturas. Quando subimos a rampa, entramos na zona escura. Novamente a densidade desdobrada no espaço. Se no início o texto é, em si, expressão gráfica da densidade que articula a exposição, o último capítulo nos coloca em densidade escura.
Dá-se como um sonho intrigante, "(...) então eu subia uma rampa e o teto seguia plano e horizontal, guiava-me na penumbra por focos muito luminosos, ofuscantes, e por eles passava (...)".
Assim é a experiência desse último trecho. As luzes até destacam algumas recapitulações, como uma escultura que retoma o que há lá fora. Entretanto, o que mais emociona é um arranjo de inúmeras pequenas esculturas. Variam os tamanhos, as pesquisas, as datas de confecção. Não fica claro se eram estudos, protótipos não realizados ou peças acabadas. Sua montagem, contudo, nos lembra um presépio -- não exatamente, mas variação sobre o tema. Ao invés de imagens figurativas, são peças abstratas, feitas de linhas, quinas, diagonais, furos, paralelepípedos, cortes em V, sobreposições. Ao fundo, folhas quase deixadas em branco, com desenhos de linhas, propositalmente super iluminadas, nos fazem ir até elas para podermos ver o que está impresso, como quando nos perdemos diante de um altar barroco. São linhas primordiais, sobre o papel de onde nasce tudo o que vimos. É a essência do artista e sua inocência infantil. Remetem aos os anjos de Paul Klee, surgidos no prenúncio da barbárie nazista e nunca mais encerrados. A luz que recebem é rebatida, e ilumina o entorno, principalmente o presépio. Há ali também uma outra entidade luminosa, uma luz atmosférica, etérea, esparsa, volumosa, que liga os dois conjuntos tão próximos e sintetiza toda a exposição.
Hegel (1770-1831), filósofo e estudioso da estética, dizia que toda verdadeira obra de arte é objetiva em todos os sentidos, inclusive em seus aspectos subjetivos. Para ele, objetividade e subjetividade não se opunham, mas compunham um todo objetivo maior, apreciável à luz da razão. Em sua teoria, a obra de arte é a primeira manifestação da consciência (humana ou de algo), a partir da qual temos um marco referencial a ser examinado pela filosofia e pela história. A obra de arte, em Hegel, sabe muito mais do que nós e do que o próprio autor da obra -- reles mortal usando o espaço a serviço da consciência no tempo.
A obra do Amílcar é isso. A subjetividade nela contida só contribui para destacá-la como portadora daquela objetividade maior. E isso é visto na exposição.
O arranjo das obras no museu do subsolo é, ainda que inconsciente ou subjetivo, um percurso por algo que precisamos resgatar. O gesto livre transformador, a autoralidade, a consciência de si, a criatividade, a qualidade, o além do imaginável, o monumental, a leveza, a densidade, o peso e a rarefação. Tudo isso é sagrado e podemos sê-lo -- já somos, se quisermos. O presépio e os anjos estão ali para nos lembrar, ou melhor, para nos fazer saber, novamente, e a luz só confirma isto.
Neste momento de escuridão, a exposição do Amílcar de Castro deveria ter sido anunciada com toda vivacidade. Tem coisas que é preciso ver para saber do que se trata. Ali, no subsolo escuro, as luzes revelam o que mais precisamos ver.
Se, ao invés de ficar assistindo a comida sumir do prato, levantássemos e virássemos a mesa, descobriríamos debaixo dela o momento sagrado desta exposição: um presépio do ouro neoconcreto mineiro, a brilhar, debaixo da densa luz dos anjos de Paul Klee que voam ao seu redor.