Não preciso saber as horas. A menos não nessa semana em que tirei férias, me desfiz de compromissos e me devoto à intenção de não ser útil (a inutilidade voluntária pode ser desafiadora). Tanto faz se faltam quinze para as tantas ou se já são alguma-coisa-e-meia. Não preciso saber o horário, a medida, o volume ou o peso.
Quero essa sensação de liberdade. Mas, a linha pálida em meu punho denuncia o relógio que não está ali. Joguei o dito na gaveta nas primeiras horas dessa folga e a marca da parte não queimada pelo sol fica no meu braço, deixando um risco branco em contraste com o antebraço e o dorso da mão. A linha da pulseira onde tradicionalmente ficam os números piscantes que determinam cada evento dos meus dias, agora carrega aquela marca para onde olho centenas de vezes ao dia, mesmo sem precisar, em busca do tempo que já perdi. Já não vejo a hora.
Não preciso saber que um porta-aviões norte-americano agora navega em águas próximas ao sudeste asiático, próximo de onde os chineses se posicionam defensivamente. Não preciso saber do resultado do recurso apresentado pelo presidente, ou presidente afastado, ou ex-presidente da Coreia do Sul a respeito de seu processo de impeachment. Não quero saber de muros, tarifas, embargos. Não preciso saber se o mercado está mal humorado ou saltitante de alegria, se o teto da inflação está sendo perfurado, se haverá reforma de ministérios e se as commodities seguem seu vai e vem, sei lá de onde e para onde, preenchendo de expectativas o cenário internacional que agora se revela com ondas de otimismo.
Quero saber é do riso que nos assalta, do humor incontido, o ir-e-vir das águas trazendo suas ondas gentis na direção da praia onde meus pés repousam enterrados num montinho de areia. Hoje, o cenário que espero contemplar é só esse, essa a linha azul infinita que é o mar divisando o horizonte com a outra linha azul infinita que é o céu imenso como teto sobre minha cabeça.
Não preciso saber do resultado das oitavas de final da disputa masculina do Aberto da Austrália, dos últimos reforços contratados pelo São Paulo para o Campeonato Paulista, da convocação do Dorival Júnior para os jogos da Seleção nas eliminatórias. Não preciso conhecer as tabelas de classificação de jogo algum.
Quero saber é de jogar conversa fora, a céu aberto. Quero me empenhar na prática preguiçosa do frescobol (o único esporte onde só se ganha quando ambos ganham). Eliminar as disputas, as contas tolas, as camisas. Vestir um calção de banho e deixar que os dias se regulem pela tabela das marés. Quero esquecer o telefone num canto até que a bateria acabe. E que tudo silencie por um instante, enquanto eu recarrego.
Não sei o bastante sobre a crise climática, mas preciso.
Quero. Mas não hoje.
Não preciso saber da agenda cultural essa semana, das estreias no cinema, da programação da tv, do teatro, dos museus, dos shows infinitos e caríssimos que se sucedem e não vou frequentar. Não preciso - e nem desejo - estar em blocos, multidões e filas. Não preciso saber quais foram as vinte músicas mais tocadas no Spotify ontem.
Quero o som da chuva, quero assistir minhas filhas em seu ócio, ouvir a canção de suas risadas à toa, o tilintar da louça e dos talheres sendo colocados na mesa, um descanso com a Manú nos braços no meio da tarde. Quero que nosso pequeno universo doméstico seja a multidão toda que se basta, por alguns dias, com o que transbordamos uns para os outros. A rotina que estreia repetida em cada novo dia. Essa é a única música em cujo ritmo me empenho em dançar.
Continuo não precisando saber que horas são. Só de birra, chamarei as horas de oras.
Quero, definitivamente, perder tempo. Acordar e dormir ao sabor da disposição. E que o deitar tenha o mesmo valor e nobreza do despertar porque, afinal, não estar é o melhor estar nessas oras. Quero não precisar, desejo não desejar.
No entanto, eu sei. Fico a remoer precisamente as coisas que gostaria de evitar, pensando e pensando nas tragédias iminentes e concretas que enfrentamos e não precisávamos. Taxas, tabelas, índices, métricas, dados, notícias, imagens e prognósticos. Procuro por um sinal dos tempos. Olho para o pulso. Já não era sem hora.
Não preciso fazer citações, mas não resisto em ecoar uns versos do Caetano que sobram por aqui nesses dias: "a esperança é um dom que eu tenho em mim". E ele insiste: "eu tenho sim". Talvez essa seja uma boa trilha sonora para sobrepor os tantos ruídos de fundo que insistem em nos assombrar cotidianamente e nos afastam do essencial, bloqueiam a inutilidade necessária para que o utilitarismo maligno siga nos escravizando/esvaziando.
Quero que a esperança possa preencher esse tempo. O tempo... Ora. Miro meu pulso e ele não está lá. Eu oro para ter uma porção de paz nesses dias. Não quero guerras de nenhuma espécie. Desejo ficar o dia todo descalço. O corpo leve e o coração prostrado, contemplando os lírios do campo, como Ele disse. Fabricar gelo em doses cavalares, carregar um livro fácil de ler sob o braço pra cima e pra baixo e talvez ler um capítulo ou uma linha até cochilar numa sombra. Ver minha filha sorrir de uma piada boba e então fazer uma prece. Ter filhos é um ato de fé.
Preciso seguir por esse caminho para me distanciar do tumulto, esquecer do que não preciso agora e procurar lembrar do que importa, só esse mínimo tão essencial, hoje, para conseguir refazer a ordem justa das coisas enfim.
Não vejo a hora.