Na gestão Tarcísio, Rota volta a ser o batalhão que mais mata na PM

Letalidade da tropa de elite da polícia havia caído entre 2020 e 2022 com adoção de câmeras nos uniformes; Secretaria da Segurança diz investir em treinamento, armas não letais e apuração de casos

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Foto do author Ítalo Lo Re
Atualização:

A Rota (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar), batalhão de elite da Polícia Militar, voltou a disparar nos últimos dois anos como o batalhão que mais mata em São Paulo. Foram 55 mortes cometidas por agentes em serviço em 2024, alta de 72% ante 2023, aponta levantamento do Instituto Sou da Paz com base em dados do Ministério Público Estadual (MP-SP). É o maior número desde 2020, quando houve 84 mortes.

O estudo, obtido com exclusividade pelo Estadão, aponta que a alta sob a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos), a segunda em dois anos, vai na contramão das quedas de 2020 a 2022. O período foi marcado pela adoção das câmeras corporais nas fardas – a Rota foi uma das primeiras no programa –, pelas comissões de mitigação (para avaliar casos de morte por PM) e compra de tasers (armas não letais).

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) diz que “a PM investe no treinamento e capacitação do efetivo, uso de equipamentos de menor potencial ofensivo” e comissões de análise. Esses grupos, diz a pasta, avaliam cada ocorrência para fazer “ajustes e orientar a tropa, sempre que necessário”.

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Batalhão da Rota, no centro de SP.  Foto: Sergio Barzaghi / Governo do Est

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Uma sequência de abusos policiais no fim de 2024 deflagrou uma crise na área da segurança pública no Estado. Entre as ocorrências, estão a morte de uma criança de 4 anos na Baixada Santista, de um estudante de Medicina baleado em um hotel da capital, e o flagra de um policial atirando um homem do alto de uma ponte na zona da capital.

Entre 2023 e 2024, a polícia repetiu incursões na Baixada Santista sob a justificativa de reprimir a atuação do Primeiro Comando da Capital (PCC) na região. A área é considerada estratégica para o crime organizado, uma vez que o Porto de Santos é usado para enviar drogas, especialmente cocaína, para o exterior.

A primeira dessas operações, a Escudo, foi deflagrada em julho de 2023 após o assassinato de um soldado da Rota no Guarujá. Meses depois, uma ação semelhante (Verão) foi replicada na Baixada. Segundo a PM, vários dos mortos têm elo com o tráfico ou passagens pela polícia, além de supostamente terem entrado em confronto com as tropas durante as abordagens.

Ministério Público, Ouvidoria das Polícias e entidades denunciaram supostos abusos em parte das ações da polícia, o que é negado pelo governo, que diz investigar os casos.

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Em 2022, foram 6 mortes cometidas por agentes a serviço da Rota, o menor número da série histórica. Na época, o batalhão deixou inclusive de figurar como o mais letal de São Paulo (ficou na 6ª colocação), posto que agora volta a ser ocupado com distância.

O segundo batalhão com mais mortes por PMs em serviço, o 14º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (BAEP), de Sorocaba, contabilizou 22 mortes no ano passado. A unidade, apesar de ter tido uma variação percentual maior do que a Rota no último ano, teve agentes envolvidos em menos da metade das mortes do que o batalhão sediado na capital paulista.

Em 2019, a ação de PMs da Rota resultou em 100 mortes, maior patamar da série histórica. Em 2020, esse número cai para 84 e, no ano seguinte, para 43, até chegar a 6 em 2022. Para especialistas, a queda foi reflexo direto das políticas adotadas pelo Estado.

“A Rota continua fazendo prisões, apreensões, mas com letalidade bem menor. Continua fazendo polícia, mas com uso proporcional da força”, afirma Rafael Rocha, coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz. Segundo ele, a queda ajudou a mostrar que as políticas que vinham sendo adotadas na época estavam sendo exitosas.

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Fontes internas da Rota ouvidas pela reportagem defendem que a queda abrupta de 2022 ainda pode ter tido influência direta da pandemia, o que colocaria o número dos últimos anos dentro da média da última década, mas pesquisadores não veem relação entre a redução na letalidade com a menor circulação de pessoas nas ruas.

“Há pesquisas que indicam que o primeiro semestre de 2020 (início da covid) foi extremamente violento, com março, abril e junho com altíssima letalidade, mesmo com as pessoas circulando menos”, diz Rocha. “À medida que as câmeras vão sendo implementadas, além de outras medidas, aí sim a letalidade cai.”

Estudo encomendado pelo comando da PM ao Centro de Ciência Aplicada em Segurança Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV), divulgado em 2022, apontou que o uso de câmeras corporais nos uniformes da polícia evitou 104 mortes nos primeiros 14 meses de introdução da tecnologia, se considerada só a Grande São Paulo. Posteriormente, outros estudos foram na mesma direção.

Em 2023, o primeiro ano da gestão Tarcísio de Freitas, as mortes cometidas por PMs em serviço voltaram a subir. Foram 353 ocorrências no Estado, alta de 37,9% ante 2022. No ano passado, foram 650 óbitos, o maior patamar desde 2020, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública.

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No caso da Rota, foram 32 mortes decorrentes de intervenção policial em 2023 – oito dessas ocorrências se deram no fim de julho, quando foi deflagrada a Operação Escudo na Baixada Santista após a morte do soldado da Rota Patrick Bastos Reis, de 30 anos.

Já em 2024 foram 55 mortes em decorrência da atuação do batalhão – 17 dessas mortes ocorreram em fevereiro, quando houve a Operação Verão na Baixada Santista. Uma das mais letais da história do Estado, a incursão deixou 56 óbitos em um período de 105 dias. Na época, a gestão estadual destacou que foram presos 1.025 suspeitos na ofensiva.

Conforme pesquisadores, houve enfraquecimento de políticas que vinham sendo adotadas anteriormente. “É um desmanche do controle do uso da força. Na Rota, há casos até de policiais participando de ações sem câmeras, sendo que a Rota inteira faz parte do programa Olho Vivo (que implementou as câmeras corporais″, diz Rocha.

Em novembro do ano passado, o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-SP) tornou réus dois agentes da Rota pela morte de um homem de 36 anos em fevereiro de 2024 em Santos. Conforme a denúncia, eles teriam forjado um confronto e dificultado a captação de imagens pelas câmeras corporais que usavam após matar o roupeiro Allan de Morais Santos.

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“Não há dúvida que houve um relaxamento de controle e mesmo um incentivo à ação mais letal por parte da Rota”, afirma o coronel reformado da PM José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública. “É um absurdo. Seria necessária uma mudança de política do comando, que teria de partir naturalmente do próprio governador.”

Na campanha eleitoral, Tarcísio e o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, colocaram em xeque a efetividade do programa Olho Vivo e chegaram a sinalizar que as câmeras constrangeriam os policiais no trabalho.

Depois de assumir o governo, Tarcísio não encerrou de fato o programa, mas promoveu trocas na Polícia Militar e minimizou críticas e denúncias sobre violência policial. Ele e integrantes da alta cúpula das forças de segurança, como o coronel Cássio Araújo de Freitas e Derrite, adotaram tom semelhante.

“A pessoa pode ir para a ONU (Organização das Nações Unidas), para a Liga da Justiça, para o raio que o parta, não estou nem aí”, disse o governador, em março do ano passado, após ser denunciado no Conselho de Direitos Humanos da ONU em razão das mortes por ações policiais na Baixada Santista. Recentemente, Tarcísio reconheceu que errou ao repetir discursos nessa linha.

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Em entrevista no fim de 2024, Leonardo Carvalho, pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirmou que, mesmo diante das altas recentes de mortes por policiais, falta ao governo anunciar ações estruturais e efetivas para reduzir a letalidade policial.

“A alta da letalidade policial, mesmo comprovada pelas evidências, em momento algum aparece na fala do secretário e do governador a implementação de ações buscando reduzir esses números. Não teve fala incisiva do Executivo paulista reconhecendo a alta da letalidade policial como um problema e indicando ações para reverter essa situação”, afirmou.

A aposta do governo pareceu ser em operações de grande envergadura, em especial na Baixada Santista, vista como um ponto estratégico para o Primeiro Comando da Capital. Na avaliação de pesquisadores, elas não foram o único motivo para alta da letalidade policial da Rota e de outros batalhões que participaram, mas funcionaram como uma espécie de “vitrine”.

“As operações passam uma mensagem para outros policiais de que ‘está liberado matar’. Passa uma mensagem de que a atual gestão da Secretaria da Segurança Pública não considera a letalidade um ponto importante. Pelo contrário, incentiva o confronto”, diz Rocha. “A Rota é o grande exemplo a ser seguido.”

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Procurada, a Secretaria da Segurança Pública afirma que ampliou em 18,5% o número de câmeras operacionais portáteis (COPs) para uso da Polícia Militar do Estado de São Paulo, “reforçando a transparência e a supervisão das operações”. A ideia é contar com 12 mil equipamentos.

“Em 2024, só a PM realizou a prisão de 129 mil criminosos e a apreensão de 6,5 mil armas de fogo ilegais, bem como retirou de circulação das ruas 193 toneladas de drogas”, diz a pasta.

A secretaria destacou ainda que, em São Paulo, por determinação da própria SSP, todos os casos de morte decorrente de intervenção policial são investigados pelas polícias Civil e Militar com o acompanhamento das respectivas corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário.