A Prefeitura de São Paulo determinou a suspensão de todos os processos administrativos baseados na Lei de Zoneamento, o que pode impactar no planejamento de novos empreendimentos e na emissão de alguns tipos de licenças e alvarás na capital paulista. A medida foi tomada após a gestão Ricardo Nunes (MDB) ser informada na quinta-feira, 23, da liminar que suspendeu os mapas que delimitam regras para construção, barulho e atividades em cada endereço da cidade.
Em nota, a Prefeitura disse que os processos “ficarão guardados nas unidades até novas instruções”. Não foi informado se há impactados. “A administração municipal, por meio da Procuradoria Geral do Município (PGM), já está tomando as medidas legais e administrativas necessárias para tentar reverter a decisão e guiar as ações sobre a aplicação da lei até que a questão seja decidida”, completou.
Como o Estadão mostrou, a liminar tem gerado incerteza e discussão sobre os efeitos. Especialistas se dividem quanto à interpretação dos efeitos legais, pois a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) movida pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) originalmente defendia a suspensão de alterações específicas em quadras de Alto de Pinheiros, na zona oeste.
Essa alteração permitia prédios de até 48 metros, o que facilitava a construção de um megatemplo onde antes era restrito a imóveis baixos, como revelou o Estadão. “Favoreceria interesses específicos de instituição religiosa, em detrimento do interesse público, da comunidade local, e das boas práticas em planejamento urbano”, apontou a Promotoria. À reportagem, a Prefeitura, a Câmara e a Igreja Presbiteriana de Pinheiros negaram irregularidades.

O pedido foi acatado em setembro, com a suspensão de trecho específico da revisão do zoneamento, lei que é de janeiro de 2024. Em julho, contudo, a lei da “revisão da revisão” foi aprovada, com um novo mapa de toda a cidade, substituindo o anterior.
Dessa forma, o MP-SP solicitou a “extensão dos efeitos da liminar anterior” para a lei mais recente. Nesse caso, contudo, a mudança não é tratada de forma específica, mas indicada no novo mapa geral de zoneamento. Isto é, o artigo suspenso se refere ao zoneamento de toda a cidade, não só de quadras específicas.
Isso gerou interpretações distintas entre especialistas. Como o artigo é relativo a todo o mapa de São Paulo, muitos avaliam que a liminar tem efeitos generalizados. Dessa forma, o mapa vigente voltaria a ser o de 2016.
Avaliação diferente tem sido feita por outra parte dos especialistas. Escritórios de advocacia ligados ao mercado imobiliário têm, por exemplo, defendido que a suspensão é exclusiva para Alto de Pinheiros.
O que dizem mercado imobiliário e especialistas?
“Apesar de o questionamento estar em uma emenda específica, o pedido é para declarar a inconstitucionalidade do artigo que determina o mapa-matriz do zoneamento”, diz Bianca Tavolari, professora de Direito na FGV. Ela menciona que os argumentos apresentados pelo MP na ação (como ausência de estudo técnico) são válidos para todo o processo de revisão da lei. “Não faria sentido se fosse só para a emenda (que facilita a construção) do templo.”
Também pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), ela salienta que a decisão destaca problemas técnicos e de transparência apontados ao longo do processo. O exemplo que cita é a própria alteração em Alto de Pinheiros, incluída quando a revisão estava prestes a ser votada na Câmara, sem que as pessoas pudessem “conhecer o texto antecipadamente”, com tempo hábil para avaliação aprofunda.
Entendimento distinto tem o mercado imobiliário. As duas principais organizações do setor em São Paulo, o Secovi-SP e a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), defendem que a liminar abrange apenas alterações nas quadras de Alto de Pinheiros. Portanto, esperam que a suspensão dos processos seja temporária e curta.
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Para o vice-presidente do Secovi-SP, Claudio Bernardes, era esperado que a Prefeitura tomasse a decisão de suspender os processos por enquanto até o posicionamento definitivo da Procuradoria do Município. “Creio que essa consulta e a respectiva resposta devem ser rápidas. Caso contrário, se houver demora significativa nessa decisão, por certo o impacto na cidade será enorme”, avalia.
“Me parece muito clara a interpretação: simplesmente estendeu os efeitos da liminar anterior e não deve causar grandes impactos na cidade, como a anterior (de setembro, específica de Alto de Pinheiros) não vinha”, diz Bernardes. Também avalia que os processos de revisão e “revisão da revisão” seguiram todos os ritos necessários.
Entendimento semelhante tem Luiz França, presidente da Abrainc, o qual afirma que a decisão teria sido “clara e objetiva” sobre envolver exclusivamente Alto de Pinheiros. “Uma discussão de uma Zona Corredor (tipo de zoneamento das quadras questionadas inicialmente na ação) não pode afetar todo planejamento da cidade”, defende.
Ele evita estimar eventuais impactos caso o entendimento seja de que todo o mapa está suspenso. Admite, contudo, que cada empresa tem um tipo de planejamento e que pode-se ter feito investimentos desde a vigência da revisão do zoneamento, há um ano.
Na decisão, o desembargador Nuevo Campos destaca que Prefeitura e Câmara tinham pedido a extinção do processo, sem julgamento de mérito, além de defendido a constitucionalidade da mudança. Já o MP-SP argumentou que a “revisão da revisão” havia incorrido “nos mesmos vícios de inconstitucionalidade”, tais como ausência de planejamento técnico e participação popular suficientes e, ainda, “violação aos princípios da impessoalidade, da moralidade, da segurança jurídica e da motivação”.
Nuevo Campos assinala, então, entendimento de que a nova lei teria os “mesmos vícios de inconstitucionalidade deduzidos na inicial, sendo idênticos os fundamentos”. “As matérias prejudiciais e as questões de mérito deduzidas pelos requeridos serão apreciadas oportunamente, ao fim da instrução da presente ação direta”, completa.
A liminar é de 14 de janeiro, mas não era de conhecimento público até o dia 22. A decisão não diz respeito a outra mudança no zoneamento aprovada pelos vereadores em dezembro, também com alterações em lotes e quadras pontuais, a qual foi integralmente vetada por Nunes na semana passada.
O mapa do zoneamento delimita regras construtivas, de barulho e de uso (residencial, não residencial e suas variações) em toda a cidade. É uma das mais importantes leis municipais, decisiva para a abertura de pedidos de licenciamentos, seja para novos empreendimentos ou para o aval para certos tipos de estabelecimentos não residenciais, dentre outros.
No ano passado, ao Estadão, a Câmara apontou que a revisão “decorreu de processo legislativo absolutamente correto, no qual foram observadas todas as normas regimentais”. Disse, à época, estar segura de que a ação seria julgada improcedente.
Também em nota no ano passado, a Igreja Presbiteriana de Pinheiros afirmou que “não recebeu qualquer favorecimento e, sim, teve acolhido um pedido”, o que seria “legalmente previsto no processo democrático que rege o ordenamento jurídico brasileiro”. E salientou ter apresentado “argumentos técnicos” e que buscou “observadas as regras legais, melhorar o aproveitamento da sua área”.
A ação foi aberta depois do MP-SP ser procurado pela Associação de Amigos de Alto dos Pinheiros (SAAP), contrária às alterações. Após a mudança no zoneamento, algumas casas vizinhas ao templo foram demolidas pela Igreja em junho.

Qual foi a mudança no zoneamento de Alto de Pinheiros?
A mudança está no texto substitutivo da revisão da Lei de Zoneamento, apresentado pouco antes da votação, em dezembro de 2023. Com o novo trecho, cerca de 10 quadras de Alto de Pinheiros perderam a restrição de construção exclusivamente de imóveis baixos, classificadas até então como Zona Corredor (ZCOR) — espécie de “cinturão comercial” de baixa estatura no entorno de Zonas Exclusivamente Residenciais (ZER), como é o caso de grande parte do distrito.
No geral, as alterações de zoneamento abrangem especialmente trechos da Avenida Doutora Ruth Cardoso e do entorno da Praça Arcipreste Anselmo de Oli, nas imediações da Ponte Cidade Universitária e da Marginal Pinheiros. Onde antes poderiam ser construídos imóveis de até cerca de 10 metros, a mudança passou a liberar até 48 metros de altura.
A alteração também permite novos tipos de atividades não residenciais. Além disso, facilita a junção de lotes para a formação de um maior terreno, possibilitando empreendimentos de porte superior.
Em 28 de janeiro de 2024, nove dias após a sanção, o prefeito, três então secretários municipais (Marcos Gadelho, de Urbanismo e Licenciamento; Edson Aparecido, de Governo; e Carlos Bezerra Júnior, de Assistência Social) e mais autoridades participaram de culto na sede da Igreja, quando se agradeceu pela mudança no zoneamento. Nunes também discursou. Veja trechos do culto com autoridades abaixo:
A visita estava na agenda oficial do prefeito, divulgada diariamente. Procurada à época, a Prefeitura não comentou a presença de Nunes e dos secretários no culto. Já a Igreja havia argumentado que “o projeto teve a aprovação de vereadores das alas governistas e de oposição e foi aprovado com ampla maioria no plenário, motivo pelo qual agradeceu os membros do Executivo e do Legislativo”.
A Igreja pleiteava mudanças na vizinhança há anos. Em nota ao Estadão à época da reportagem, apontou que discutia a ampliação do templo desde 2018 e que, depois, “passou a trabalhar mediante interação junto ao processamento dos projetos de revisão do Plano Diretor e, posteriormente, da Lei de Zoneamento”.
Com a revisão do zoneamento na Câmara, em 2023, o vereador Isac Félix apresentou a emenda que alterava o entorno do templo. Ele havia justificado, na emenda, que a área teria características de uso, ocupação, sistema viário e relevo que possibilitaram a nova classificação, de Zona de Centralidade (ZC), um “centrinho de bairro”.
Na plataforma de tramitação da Câmara, o documento da emenda traz dois arquivos anexos, ambos com “Igreja Presbiteriana” no título, nos quais são mostradas as alterações de zoneamento sugeridas. A mudança foi incorporada ao projeto de lei da revisão, aprovado por 46 dos 55 vereadores. Procurado à época, Félix não respondeu ao Estadão.
Veja abaixo, imagens do projeto do megatemplo de Alto de Pinheiros:
Também procurado pelo Estadão, à época, o relator da revisão do zoneamento, o então vereador e hoje secretário municipal Rodrigo Goulart (PSD), respondeu que a proposta foi incorporada após ser apresentada por Félix e passar por avaliação técnica. Destacou não ter relação com a igreja e argumentou que a apresentação de emendas e mudanças no dia da votação são prerrogativa de todos os vereadores.
Além disso, mencionou outras liminares que tentaram barrar a revisão do zoneamento como um todo (a ação atual envolve apenas o trecho sobre Alto de Pinheiros), as quais foram depois consideradas improcedentes (as decisões avaliaram, porém, a tramitação na Câmara, não o conteúdo das mudanças). O nome de Goulart não foi citado no culto em que os reverendos agradeceram às autoridades pela mudança.
Como é o projeto do megatemplo da Igreja Presbiteriana de Pinheiros?
A unidade de Pinheiros é a mais rica entre as ligadas à Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), segundo balanço de 2023. No aniversário de 117 anos da Igreja, em julho de 2023, o reverendo Arival Dias Casimiro apresentou o projeto de expansão, com megatemplo, colégio particular, capela 24 horas e praça de alimentação.
“Nunca uma igreja cristã, evangélica, esteve na marginal. A marginal tem tudo, mas não uma igreja pregando a Bíblia, ensinando a palavra de Deus. E vai ter”, disse. Após ser procurada pelo Estadão, a Igreja retirou do ar grande parte dos cultos transmitidos no último ano, antes disponíveis no YouTube e Facebook.
Segundo apresentado no culto de julho do ano passado, o megatemplo ocuparia terreno de cerca de 5 mil m², com 14 mil m² de área construída ao fim da obra. A previsão é de cerca de 2,6 mil assentos na área de culto e 253 vagas de estacionamento, no subsolo.
Em culto em 2022, o pastor Arival afirmou que a Igreja arrecadava de R$ 2 milhões a R$ 2,5 milhões por mês e explicou o plano de expansão. “Estamos pensando estrategicamente. Compramos do outro lado, ali, e estamos comprando mais duas (casas). Estamos fechando um quarteirão, numa cabeça de ponte (da Cidade Universitária)”, disse. Hoje, o espaço de culto não comporta todos os frequentadores em alguns dias da semana
Banners e envelopes divulgavam pedidos de doações para o novo templo. O plano da Igreja à época era de que, temporariamente, fosse instalada uma tenda para 1,5 mil pessoas onde as casas foram recentemente demolidas.
Por que o Ministério Público considera a mudança inconstitucional?
Na petição, o procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, aponta seis aspectos principais que caracterizaram a inconstitucionalidade da mudança. São eles:
- “Ausência de participação popular em relação às alterações, que foram aprovadas no mesmo dia de sua apresentação”;
- “Ofensa ao princípio de moralidade e impessoalidade, por conta de desvio de finalidade da emenda parlamentar apresentada, que se afastou do interesse público em benefício particular”;
- “Ausência de planejamento técnico na produção da lei que altera o ordenamento do uso e ocupação do solo, promovendo alterações tópicas incompatíveis com o planejamento urbano integral”;
- “Indevido fracionamento, permitindo soluções tópicas isoladas e pontuais, desvinculadas do planejamento urbano integral e sua conformidade com as normas urbanísticas, vulnerando integralidade do instrumento básico da política desenvolvimento do Município”;
- “Violação do ato jurídico perfeito e da segurança jurídica, inobservância das restrições urbanísticas consistente na convencionais e da motivação”;
- “Violação aos artigos 111, 144, 180, I, II e V, 181 e 191 da Constituição Estadual (dentre eles, o trecho que diz que os poderes de Estado devem obedecer a “princípios da impessoalidade, moralidade, legalidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência”).
O procurador aponta que a alteração ocorreu “sem lastro técnico” e “em ofensa aos princípios de impessoalidade e moralidade”. Também salienta que a emenda que sugeriu a mudança trazia “Igreja Presbiteriana de Pinheiros” no título do arquivo, o que, dentro outros motivos, deixaria “claro que a emenda parlamentar atendeu a interesse particular”.
“A lei há de ser impessoal e pautada pela ética, não podendo buscar a satisfação de interesses outros além do interesse público primário, não servindo, portanto, para que uma alteração abrupta e de inopino de regime jurídico tenha como escopo exclusivo interesses particulares, sob pena de desvio de finalidade”, diz. O procurador cita ainda “notório desvio de finalidade, visando privilegiar, pontualmente, determinadas pessoas em detrimento das aspirações coletivas e regras constitucionais”.