A cada pessoa assassinada por bandidos em Santos, no litoral de São Paulo, outras duas perderam a vida em decorrência da ação da Polícia Militar em serviço, segundo levantamento feito pelo Estadão com base em dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado (SSP). Foram 41 mortes por policiais na cidade litorânea ano passado, pouco mais do que o dobro dos 20 homicídios dolosos no período – em 2024, o município não registrou latrocínio (roubo seguido de morte).
A SSP afirma que, na Baixada Santista, houve reforço na segurança e a Operação Verão para prevenir e combater delitos. Cita ainda quedas de “roubos (-24,68%), furtos (-4,23%) e homicídios (-8,57%), além do aumento de 9,3% das prisões e de 25,4% apreensões de armas” na região.
A pasta acrescenta que óbitos em confronto com a polícia e outros homicídios “são completamente distintos, conforme estabelecido por normativas internacionais e nacionais, e qualquer comparação ou relação entre esses casos induz o leitor ao erro sobre a legalidade das ações policiais”. Especialistas ouvidos pela reportagem, porém, reconhecem a validade da comparação, especialmente para entender o impacto de cada tipo de violência.

Houve ao menos 56 mortos pela PM em Santos e em cidades próximas durante a operação Verão, no começo de 2024, uma das mais letais da história do Estado. A secretaria diz que ao menos mil suspeitos foram presos na ofensiva, que durou cerca de cem dias.
Entre 2023 e 2024, a polícia repetiu, após a morte de dois agentes da Rota (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar), tropa de elite da PM, duas grandes operações na Baixada – a Escudo, antecessora da Verão, teve 28 mortes – sob a justificativa de reprimir o Primeiro Comando da Capital (PCC). O Porto de Santos é estratégico para o envio de drogas para o exterior.
Como reflexo disso, as mortes cometidas por policiais militares mais do que dobraram no último ano em Santos: foram de 18, em 2023, para 41 casos, em 2024, crescimento de 117%.
A alta foi ainda maior do que a média do Estado (76%), aumentando o percentual de mortes por PMs em relação a outras ocorrências – na capital paulista, para se ter um parâmetro, as mortes por agentes da corporação (194) corresponderam a 34,8% da soma dos casos de homicídio doloso (498) com os latrocínios (53) no ano passado.
A letalidade policial motivou uma das mais graves crises da segurança pública na gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) no fim de 2024, quando vieram à tona uma série de denúncias de abuso policial. O governador reconheceu erros na sua retórica ao incentivar o uso da força policial e prometeu investir no uso de câmeras nas fardas dos PMs, mas manteve Guilherme Derrite à frente da Secretaria da Segurança.
A adoção de bodycams nos uniformes dos policiais, segundo especialistas, foi uma das estratégias mais exitosas no combate à violência policial nos últimos anos.
Criança de 4 anos foi morta em favela
“A Baixada Santista voltou a ser enorme preocupação, pensando nesses níveis de mortalidade de civis, especialmente quando se pensa não só nos suspeitos que são mortos, mas também nos efeitos colaterais para a cidade”, diz Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Ela cita o caso da menino Ryan Santos, de 4 anos, que morreu com um tiro na barriga durante operação policial em novembro, em uma favela de Santos. Na época, a própria corporação disse que o tiro que atingiu a criança provavelmente partiu de um PM.
O caso foi registrado como morte decorrente de intervenção policial, mas, segundo Samira, há casos como esse que sequer podem ter sido registrados como tal. “Esses números (do levantamento) começam a nos dar dimensão do problema, mas o problema é algo maior do que conseguimos processar a partir dos números.”
No Guarujá, também impactado por operações de grande envergadura, o período em que as ocorrências mais tiveram impacto foi em 2023, justamente o ano em que a cidade foi alvo da Operação Escudo.
A ação foi deflagrada em julho daquele ano após o assassinato soldado Rota Patrick Bastos Reis e terminou com 28 mortos na Baixada Santista. Nem todas foram no Guarujá, mas a cidade foi a mais impactada, com viaturas de diferentes regiões operando na cidade.
Naquele ano, as mortes por intervenção policial no Guarujá saltaram 170% em relação aos 10 casos de 2022. Foram 27 casos na cidade, mais do que os 25 homicídios dolosos registrados por lá em 2023 (não houve latrocínios). O número correspondeu ainda a 7% de todos os casos de letalidade policial no Estado.

A justificativa da gestão Tarcísio é de que as operações na Baixada teriam o objetivo de combater o crime organizado, mas pesquisadores questionam a efetividade da medida. “A atuação da polícia na região não tem gerado os efeitos esperados na desarticulação do crime organizado e aumentado a insegurança da população santista, que cada vez mais se vê em meio a confrontos armados altamente letais”, diz Malu Pinheiro, do Instituto Sou da Paz.
“Essa política tem alimentado os casos de violência armada, podendo produzir retaliações por parte de grupos criminais, alimentando um ciclo de insegurança e ineficácia nas políticas de segurança do Estado”, acrescenta a pesquisadora.
Conforme a PM, vários dos mortos nas operações na Baixada têm elo com o tráfico ou passagens pela polícia, além de supostamente terem entrado em confronto com as tropas durante as abordagens. O Ministério Público do Estado (MP-SP), a Ouvidoria das Polícias e outras entidades denunciaram supostos abusos em parte das ações da polícia - o governo nega irregularidades e diz investigar os casos.
Ainda no fim de 2023, dois PMs da Rota foram os primeiros a se tornar réus por homicídio duplamente qualificado após a Justiça receber denúncia oferecida pelo Ministério Público por conta da morte de um morador durante abordagem policial na comunidade na Vila Zilda, no Guarujá, uma das mais afetadas pela operação. Um deles teria matado a vítima com tiro de fuzil dentro de sua própria casa.
Os agentes também foram acusados de tampar suas câmeras corporais e plantar uma arma de fogo para forjar um confronto com o alvo, suposta prática também relatada por promotores de Justiça em outras denúncias. Posteriormente, até mesmo o coordenador da operação, também da Rota, tornou-se réu por outra morte na Baixada.
Em novembro do ano passado, o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-SP) também tornou réus dois agentes da Rota pela morte de um homem de 36 anos em fevereiro de 2024 em Santos, no âmbito da Operação Verão. Conforme a denúncia, eles teriam forjado confronto e dificultado a captação de imagens pelas câmeras corporais que usavam após matar a vítima, que trabalhava como roupeiro.
“Não há dúvida que houve relaxamento de controle e mesmo um incentivo à ação mais letal por parte da Rota”, afirmou o coronel reformado da PM José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública. “Seria necessária uma mudança de política do comando, que teria de partir naturalmente do próprio governador.”
Em Santos, as 41 mortes cometidas por agentes da PM no ano passado foram pouco mais de 6% dos casos do Estado. Trata-se do maior percentual observado na cidade ao menos desde 2020, começo da análise dos dados feita pelo Estadão. Naquele ano, os casos observados por lá correspondiam a menos de 2% do total. Após queda histórica, as mortes por policiais voltaram a subir nos últimos dois anos no Estado. Os homicídios, por sua vez, seguem em redução.
Pressionado, Derrite promoveu, no começo da semana passada, novas trocas em departamentos centrais da Polícia Civil. Entre outras mudanças, mudou o comando do Deinter (Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo do Interior) 6, em Santos.
Membros da alta cúpula da secretaria consultados pela reportagem minimizaram o movimento e afirmaram que são mudanças de praxe, feitas normalmente a cada dois anos pela pasta. Segundo eles, não há motivo específico para as decisões. Especialistas em segurança pública, porém, têm cobrado alterações mais profundas diante dos casos de violência e letalidade policial.
Um a cada três casos teve envolvimento de agentes da Rota
A Rota teve papel central na alta de mortes por PMs em serviço em Santos. Quase um terço dos casos dos casos na cidade envolveu agentes da unidade no ano passado, segundo dados do Ministério Público.
Segundo o MP-SP, de 43 mortes por PMs registradas em 2023 em Santos, 14 tiveram envolvimento de agentes da Rota – 32,6% do total de casos. Como mostrou o Estadão recentemente, sob Tarcísio, o batalhão voltou a ser o que mais mata no Estado.
Na capital paulista, as mortes com envolvimento de agentes da Rota corresponderam a menos de 10% do total das mortes por PMs. Entre 186 ocorrências, 18 tiveram envolvimento de agentes da tropa de elite, considerada referência na atuação em casos de alta complexidade.
A secretaria afirma que a Rota foi um dos batalhões acionados para auxiliar no reforço da segurança na Baixada Santista, o que inclui a Operação Verão. “O uso da força pela Polícia Militar é regulado por protocolos rígidos e todos os casos de morte em decorrência de intervenção policial são investigados pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário”, afirmou.
“As forças de segurança do Estado são instituições legalistas, que não compactuam com desvios de conduta de seus agentes. Também possuem corregedorias atuantes para investigar e punir todos aqueles que agem em desacordo com os protocolos das instituições e infringem a lei”, acrescenta a secretaria, em nota.