A Justiça de São Paulo determinou a suspensão temporária do mapa da atual Lei de Zoneamento, que havia passado por uma “revisão da revisão” no ano passado e estava em vigor desde julho. A decisão liminar gerou incerteza e dúvidas entre especialistas e técnicos da Prefeitura, por não haver entendimento sobre qual é o mapa de zoneamento agora válido na cidade.
Procurada, a gestão Ricardo Nunes (MDB) respondeu que ainda não foi intimada. “Quando for, tomará as medidas que considerar cabíveis”, disse, em nota. Durante o processo, tem argumentado que as alterações são constitucionais.
A liminar se refere à Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) movida pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que questiona a revisão da Lei de Zoneamento, de janeiro de 2024. O processo originalmente é voltado ao trecho da revisão que alterou parte do regramento de Alto de Pinheiros, na zona oeste. “Favoreceria interesses específicos de instituição religiosa, em detrimento do interesse público, da comunidade local, e das boas práticas em planejamento urbano”, apontou a Promotoria.
Essa mudança passou a permitir a construção de prédios de até 48 metros de altura onde antes era restrito a construções baixas e facilitou o projeto de construção de uma megatemplo de 13 andares no bairro, com acesso pela Marginal do Pinheiros, como revelou o Estadão. Trechos da reportagem são mencionados e reproduzidos nos autos da ação. Após a alteração entrar em vigor, o prefeito e outras autoridades foram chamadas à Igreja Presbiteriana de Pinheiros (IPP), na qual discursaram e receberam agradecimentos pela mudança.

A Igreja Presbiteriana de Pinheiros tem afirmado que “não recebeu qualquer favorecimento e, sim, teve acolhido um pedido”, o que seria “legalmente previsto no processo democrático que rege o ordenamento jurídico brasileiro”. Em nota no ano passado, também salientou ter apresentado “argumentos técnicos” e diz que buscou “observadas as regras legais, melhorar o aproveitamento da sua área”. (Saiba mais sobre o caso e veja vídeos com o projeto do megatemplo e o culto com autoridades ao longo desta publicação).
A situação pode emperrar o processo de licenciamento de novos empreendimentos na cidade e, no setor, já se fala em “insegurança jurídica”. Esse risco já havia sido apontado por parte dos especialistas durante os processos de “revisão”, em 2023, e “revisão da revisão”, no primeiro semestre do ano passado, com posterior judicialização por associações de bairro e pela própria Promotoria. Como as duas alterações mais recentes foram suspensas, há aqueles que entendem que o atual mapa em vigor é o do zoneamento de 2016.
Entre especialistas, há também quem avalie a possibilidade de entendimento de que a decisão suspende apenas a mudança em Alto de Pinheiros, e não todo o mapa.
O trecho que alterava o zoneamento do bairro já estava suspenso liminarmente desde setembro. Como a “revisão da revisão” altera a lei do começo do ano passado, com um novo mapa que segue a modificar o zoneamento de Alto de Pinheiros, o desembargador Nuevo Campos entendeu que deveria ser liminarmente suspensa, acatando pedido da Promotoria.
Na decisão, o desembargador destaca que a Prefeitura e a Câmara haviam solicitado a extinção do processo, sem julgamento de mérito, além de terem defendido a constitucionalidade da mudança. Já o MP-SP argumentou que a “revisão da revisão” havia incorrido “nos mesmos vícios de inconstitucionalidade”, tais como ausência de planejamento técnico e participação popular suficientes e, ainda, “violação aos princípios da impessoalidade, da moralidade, da segurança jurídica e da motivação”.
Nuevo Campos assinala, então, entendimento de que a nova lei teria os “mesmos vícios de inconstitucionalidade deduzidos na inicial, sendo idênticos os fundamentos”. “As matérias prejudiciais e as questões de mérito deduzidas pelos requeridos serão apreciadas oportunamente, ao fim da instrução da presente ação direta”, completa.
A liminar data de 14 de janeiro, mas não era de conhecimento público até esta quarta-feira, 22. A decisão não diz respeito a outra mudança no zoneamento aprovada pelos vereadores no fim de dezembro, também com alterações em lotes e quadras pontuais, a qual foi integralmente vetada por Nunes nesta semana.
Para especialistas, a alteração no zoneamento de Alto de Pinheiros pode ser considerado ilegal, pois contraria princípios gerais do zoneamento, que prevê áreas de transição entre zonas somente de residências baixas e aquelas com prédios. Além disso, a alteração foi pontual: endereços de características similares em diferentes regiões seguiram com classificação restritiva.
O mapa do zoneamento delimita regras construtivas, de barulho e de uso (residencial, não residencial e suas variações) em toda a cidade. É uma das mais importantes leis municipais, decisiva para a abertura de pedidos de licenciamentos, seja para novos empreendimentos ou para o aval para determinados tipos de estabelecimentos não residenciais, dentre outros.

No ano passado, ao Estadão, a Câmara apontou que a revisão “decorreu de processo legislativo absolutamente correto, no qual foram observadas todas as normas regimentais”. Disse, à época, estar segura de que a ação seria julgada improcedente.
A ação foi aberta após o MP-SP ser procurado pela Associação de Amigos de Alto dos Pinheiros (SAAP), contrária às alterações. Após a mudança no zoneamento, algumas casas vizinhas ao templo foram demolidas pela Igreja em junho.
Em um culto, foi dito que a IPP comprou ao menos 12 imóveis no entorno, a fim de expandir as instalações. A estimativa é de que o megatemplo possa custar cerca de R$ 80 milhões.
Qual foi a mudança no zoneamento de Alto de Pinheiros?
A mudança está no texto substitutivo da revisão da Lei de Zoneamento, apresentado pouco antes da votação, no fim de dezembro de 2023. Com o novo trecho, cerca de 10 quadras de Alto de Pinheiros perderam a restrição de construção exclusivamente de imóveis baixos, classificadas até então como Zona Corredor (ZCOR) — espécie de “cinturão comercial” de baixa estatura no entorno de Zonas Exclusivamente Residenciais (ZER), como é o caso de grande parte do distrito.
No geral, as alterações de zoneamento abrangem especialmente trechos da Avenida Doutora Ruth Cardoso e do entorno da Praça Arcipreste Anselmo de Oli, nas imediações da Ponte Cidade Universitária e da Marginal Pinheiros. Onde antes poderiam ser construídos imóveis de até cerca de 10 metros, a mudança passou a liberar até 48 metros de altura.
A alteração também permite novos tipos de atividades não residenciais. Além disso, facilita a junção de lotes para a formação de um maior terreno, possibilitando empreendimentos de porte superior.
Em 28 de janeiro de 2024, nove dias após a sanção, o prefeito, três então secretários municipais (Marcos Gadelho, de Urbanismo e Licenciamento; Edson Aparecido, de Governo; e Carlos Bezerra Júnior, de Assistência Social) e mais autoridades participaram de um culto na sede da Igreja, quando se agradeceu pela mudança no zoneamento. Nunes também discursou. Veja trechos do culto com autoridades abaixo:
A visita estava na agenda oficial do prefeito, divulgada diariamente. Procurada à época, a Prefeitura não comentou a presença de Nunes e dos secretários no culto. Já a Igreja havia argumentado que “o projeto teve a aprovação de vereadores das alas governistas e de oposição e foi aprovado com ampla maioria no plenário, motivo pelo qual agradeceu os membros do Executivo e do Legislativo”.
A Igreja pleiteava mudanças na vizinhança há anos. Em nota ao Estadão à época da reportagem, apontou que discutia a ampliação do templo desde 2018 e que, depois, “passou a trabalhar mediante interação junto ao processamento dos projetos de revisão do Plano Diretor e, posteriormente, da Lei de Zoneamento”.
O Zoneamento e o Plano Diretor são as mais importantes leis urbanísticas da cidade, responsáveis por classificar todas as vizinhanças, fixando o limite de altura de novas construções, o máximo de barulho permitido, locais que receberão incentivos para a verticalização, áreas de proteção ambiental etc.
Com a revisão do zoneamento na Câmara, em 2023, o vereador Isac Félix apresentou a emenda que alterava o entorno do templo. Ele havia justificado, na emenda, que a área teria características de uso, ocupação, sistema viário e relevo que possibilitaram a nova classificação, de Zona de Centralidade (ZC), um “centrinho de bairro”.

Na plataforma de tramitação da Câmara, o documento da emenda traz dois arquivos anexos, ambos com “Igreja Presbiteriana” no título, nos quais são mostradas as alterações de zoneamento sugeridas. A mudança foi incorporada ao projeto de lei da revisão, aprovado por 46 dos 55 vereadores. Procurado à época, Félix não respondeu ao Estadão.
Veja abaixo, imagens do projeto do megatemplo de Alto de Pinheiros.
Também procurado pelo Estadão, à época, o relator da revisão do zoneamento, o então vereador e hoje secretário municipal Rodrigo Goulart (PSD), respondeu que a proposta foi incorporada após ser apresentada por Félix e passar por avaliação técnica. Destacou não ter relação com a Igreja Presbiteriana e argumentou que a apresentação de emendas e mudanças no dia da votação são prerrogativa de todos os vereadores.
Além disso, mencionou outras liminares que tentaram barrar a revisão do zoneamento como um todo (a ação atual envolve apenas o trecho sobre Alto de Pinheiros), as quais foram depois consideradas improcedentes (as decisões avaliaram, porém, a tramitação na Câmara, não o conteúdo das mudanças). O nome de Goulart não foi citado no culto em que os reverendos agradeceram às autoridades pela mudança.
Como é o projeto do megatemplo da Igreja Presbiteriana de Pinheiros?
A unidade de Pinheiros é a mais rica entre as ligadas à Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), segundo balanço de 2023. No aniversário de 117 anos da Igreja, em julho de 2023, o reverendo Arival Dias Casimiro apresentou o projeto de expansão, com megatemplo, colégio particular, capela 24 horas e praça de alimentação.

“Nunca uma igreja cristã, evangélica, esteve na marginal. A marginal tem tudo, mas não uma igreja pregando a Bíblia, ensinando a palavra de Deus. E vai ter”, disse. Após ser procurada pelo Estadão, a Igreja retirou do ar grande parte dos cultos transmitidos no último ano, antes disponíveis no YouTube e Facebook.
Segundo apresentado no culto de julho do ano passado, o megatemplo ocuparia terreno de cerca de 5 mil m², com 14 mil m² de área construída ao fim da obra. A previsão é de cerca de 2,6 mil assentos na área de culto e 253 vagas de estacionamento, no subsolo.
Em um culto em 2022, o pastor Arival afirmou que a Igreja arrecadava de R$ 2 milhões a R$ 2,5 milhões por mês e explicou o plano de expansão. “Estamos pensando estrategicamente. Compramos do outro lado, ali, e estamos comprando mais duas (casas). Estamos fechando um quarteirão, numa cabeça de ponte (Ponte da Cidade Universitária)”, disse.
Hoje, o espaço de culto não comporta todos os frequentadores em alguns dias da semana. Em 14 de julho, por exemplo, quando o Estadão visitou o espaço, parte dos fiéis assistia a um dos quatro cultos daquele domingo em salas de transmissão instaladas no mesmo imóvel.
Banners e envelopes divulgavam pedidos de doações para o novo templo. O plano da Igreja à época era de que, temporariamente, fosse instalada uma tenda para 1,5 mil pessoas onde as casas foram recentemente demolidas.

Por que o Ministério Público considera a mudança inconstitucional?
Na petição, o procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, aponta seis aspectos principais que caracterizaram a inconstitucionalidade da mudança. São eles:
- “Ausência de participação popular em relação às alterações, que foram aprovadas no mesmo dia de sua apresentação”;
- “Ofensa ao princípio de moralidade e impessoalidade, por conta de desvio de finalidade da emenda parlamentar apresentada, que se afastou do interesse público em benefício particular”;
- “Ausência de planejamento técnico na produção da lei que altera o ordenamento do uso e ocupação do solo, promovendo alterações tópicas incompatíveis com o planejamento urbano integral”;
- “Indevido fracionamento, permitindo soluções tópicas isoladas e pontuais, desvinculadas do planejamento urbano integral e sua conformidade com as normas urbanísticas, vulnerando integralidade do instrumento básico da política desenvolvimento do Município”;
- “Violação do ato jurídico perfeito e da segurança jurídica, inobservância das restrições urbanísticas consistente na convencionais e da motivação”;
- “Violação aos artigos 111, 144, 180, I, II e V, 181 e 191 da Constituição Estadual (dentre eles, o trecho que diz que os poderes de Estado devem obedecer a “princípios da impessoalidade, moralidade, legalidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência”).
O procurador aponta que a alteração ocorreu “sem lastro técnico” e “em ofensa aos princípios de impessoalidade e moralidade”. Também salienta que a emenda que sugeriu a mudança trazia “Igreja Presbiteriana de Pinheiros” no título do arquivo, o que, dentro outros motivos, deixaria “claro que a emenda parlamentar atendeu a interesse particular”.
“A lei há de ser impessoal e pautada pela ética, não podendo buscar a satisfação de interesses outros além do interesse público primário, não servindo, portanto, para que uma alteração abrupta e de inopino de regime jurídico tenha como escopo exclusivo interesses particulares, sob pena de desvio de finalidade”, diz. O procurador cita ainda “notório desvio de finalidade, visando privilegiar, pontualmente, determinadas pessoas em detrimento das aspirações coletivas e regras constitucionais”.