A Prefeitura de São Paulo conta com a aprovação nesta sexta-feira, 16, de um projeto de lei com incentivos e isenções fiscais para a readequação e a transformação de edifícios do centro em residenciais. Enviado na semana passada à Câmara Municipal, o PL já passou na primeira votação e deve obter votos suficientes para a aprovação, sob críticas de entidades pela tramitação em caráter de urgência e a falta de discussão nos conselhos municipais.
Chamado Requalifica Centro, o PL 447 promove o chamado “retrofit”, isto é, a modernização ou adequação de imóveis para os parâmetros atuais de segurança, acessibilidade, salubridade e afins, permitindo por vezes o aumento de área construída, com foco especialmente na conversão de uso do comercial para o residencial. É voltado exclusivamente às construções existentes ou licenciadas antes de 23 de setembro de 1992.
A proposta da gestão Ricardo Nunes (MDB) abrange uma parte dos distritos Sé, República e Santa Cecília, em um perímetro formado pela Rua Mauá, a Avenida do Estado, a Rua Tabatinguera, a Praça Doutor João Mendes, a Rua Dona Maria Paula, os Viadutos Dona Paulina, Jacareí e Nove de Julho, as Avenidas São Luís e Ipiranga e a Rua Cásper Líbero. O território tem um total de 3 quilômetros quadrados, com um perímetro “especial” de maiores incentivos fiscais, no entorno da Cracolândia, no qual a isenção de IPTU prevista é maior (10 anos em vez de três anos, como o proposto para o restante).
Na última semana, outros dois projetos urbanísticos da gestão municipal também foram aprovados em primeira votação, ambos igualmente voltados à região central. Um deles é o Plano de Intervenção Urbana (PIU) Setor Central, que estava na Câmara desde novembro passado, e o outro é a Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí, enviada ao Legislativo em 2015, ainda na gestão Fernando Haddad (PT).
De acordo com o líder do governo na Câmara, Fabio Riva (PSDB), os outros dois projetos serão pautados para a segunda votação e terão novas audiências públicas no segundo semestre, após o recesso legislativo. Ele argumenta que a colocação em pauta dos PLs foi um entendimento do colégio de líderes e que o Requalifica Centro tem condição de ser aprovado agora, por abranger um perímetro menor do que os demais.
Riva nega, porém, que haja alguma “celeridade” na apreciação do tema. O projeto tramita em regime de urgência e teve o intervalo mínimo entre as discussões reduzido pela metade, de 10 para 5 dias.
A Prefeitura defende que o projeto tem o objetivo de reduzir a ociosidade de edifícios subaproveitados e aumentar a população da região, aproveitando a oferta de infraestrutura, mobilidade e empregos do entorno. Entre os incentivos fiscais previstos, voltados à habitação, estão: isenção de IPTU nos três primeiros anos após a conclusão da obra (prazo ampliado para 10 anos no caso do perímetro no entorno da Cracolândia), aplicação de alíquotas progressivas do IPTU durante cinco anos após o período de isenção, redução para 2% da alíquota do ISS para serviços relativos à obra, isenção de ITBI e outros.
Também incentiva a chamada "fachada ativa", pois prevê que o pavimento térreo e a cobertura não sejam computados como área construída (que precisa respeitar um limite por lote) se tiverem uso comercial. Além disso, permite a fusão de lotes, o aumento de área construída dentro dos padrões permitidos na legislação (isto é, um edifício pode ficar mais alto do que o original) e dispensa exigências legais em determinadas situações (um exemplo é a chamada quota ambiental, que prevê o cumprimento de um mínimo de espaço permeável, com jardins, vegetação e afins, poder ser compensada com a doação de mudas ou valor correspondente).
Falta de participação popular é criticada
O Requalifica Centro passou em primeira votação com 38 votos favoráveis (o mínimo necessário era 37), seis abstenções (bancada do PT) e seis contrários (bancada do PSOL) na madrugada do dia 8. Ele passou por audiência pública marcada naquela mesma semana no sábado, 10, após o feriado de 9 de julho, e terá outra nesta sexta-feira, às 10h, mesma data que o governo planeja colocar o tema para segunda e última votação.
A falta de apresentação nos conselhos municipais relacionados ao tema, a participação popular considerada insuficiente e a não apresentação de estudos técnicos de impacto estão entre os principais pontos criticados em relação ao projeto. Embora o retrofit em si seja entendido como necessário para a região, entidades e especialistas defendem que a segunda votação precisa ser suspensa para permitir análise adequada e adaptações no texto.
O Núcleo de Questões Urbanas e o Observatório da Revisão do Plano Diretor de São Paulo, ligados ao Insper, por exemplo, publicaram nota técnica sobre o PL na quarta-feira, 14, a qual diz que a tramitação da proposta viola “o princípio da gestão democrática”, pois não foi apresentada e discutida em órgão municipais de representação popular. Entre eles, estão o Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU), a Câmara Técnica de Legislação Urbana (CLTU) e a Comissão Executiva da Operação Urbana Centro, dentre outros.
Entre os pontos que o texto aponta que precisam ser discutidos, está um trecho que permitiria que normas da lei de zoneamento sejam descumpridas. Dessa forma, por exemplo, possibilitaria que um retrofit de um prédio em área determinada pela legislação como Zona Especial de Interesse Social (ZEI) não seja voltado à população de renda mais baixa.
O Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) de São Paulo também se manifestou sobre o tema por meio de nota pública, defendendo que a proposta seja discutida de “de forma ampla à sociedade por meio de instrumentos de participação social”, com novas audiências públicas. “Isso (tramitação rápida) faz com que contribuições que a sociedade poderia apresentar para o aprimoramento passem ao largo”, aponta ao Estadão o urbanista Fernando Túlio Salva Rocha Franco, presidente da entidade.
Entre os aspectos que diz necessitarem de maior avaliação, estão os impactos econômicos dos incentivos fiscais para a cidade, que poderão ser somados com outros previstos em no PIU Setor Central, PL aprovado em primeira votação na segunda. Na avaliação do urbanista, é necessário haver mais incentivos voltados à habitação de renda baixa em comparação aos demais, para garantir que a aplicação fique restrita a projetos para as classes média e alta. “É um bom projeto, mas tem problemas graves.”
Professor de Urbanismo da Mackenzie, Valter Caldana contextualiza que o retrofit é um dos instrumentos previstos no Plano Diretor que não avançavam, mesmo após sete anos da lei. Porém, considera que a tramitação sem uma avaliação aprofundada e com discussão popular deixa o projeto aquém do necessário e, ainda, abre margem para uma provável judicialização.
Um dos aspectos ressaltados pelo docente é que os projetos urbanísticos precisam estar alinhados, potencializando um ao outro, o que não percebe nos referentes ao centro. “A discussão está fragmentada. A lei do retrofit não conversa com o PIU Centro, que não conversa com a Operação Urbana do Tamanduateí, que não conversa com a revisão do plano…”, comenta. “Vai se construir uma sucessão de impasses.”
Para ele, o Requalifica vai ter impacto caso a caso, mas não traz uma estratégia do que seria essa mudança no perfil habitacional do centro. Isso se deve em parte porque o Plano Municipal de Habitação está na Câmara há cinco anos, mas não tem perspectiva para ser votado, embora também abranja normas para o retrofit.
Projeto enfrenta cobranças na Câmara
Líder do PSOL na Câmara, a vereadora Luana Alves critica a não apresentação do projeto nos conselhos municipais. “Mais uma vez, há um esvaziamento da gestão popular”, critica. Ela afirma que o projeto não considera as complexidades da região, em que há uma parcela significativa de pessoas que moram em cortiços, por exemplo. Além disso, ressalta que as audiências públicas deveriam ter a data e horário divulgados com ao menos 15 dias de antecedência, a fim de garantir maior adesão.
Já o vereador Antonio Donato (PT) considera que a velocidade de tramitação causa estranheza e dificulta avaliação técnica. “O projeto pode até ser bom, mas a gente fica inseguro de aprovar sem haver debate, uma consulta a especialistas.”
Em nota ao Estadão, a gestão Nunes apontou haver “urgência” na aprovação de projetos urbanísticos para o centro, “cuja situação foi agravada pela pandemia”. Também alegou que as propostas “seguiram os ritos participativos da Prefeitura, com diversas audiências públicas e debates”.
Em relação às críticas específicas de produção de habitação social, respondeu que é um dos objetivos principais do PIU Setor Central, cuja aplicação ocorreria por meio de recursos arrecadados em outorga onerosa (valor pago pelo setor privado para construir acima de um limite básico determinado para o local), destinados a famílias com renda de até dois salários mínimos.
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