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Exercício, ciência e treinamento

Opinião | Tudo o que você precisa saber sobre suplementos pré-treino – com destaque para a cafeína

Algumas substâncias atuam em médio e longo prazo, e não precisam ser consumidas necessariamente antes do treino; a cafeína, por sua vez, combina com esse momento, mas é bom alinhar expectativas sobre seus efeitos

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Foto do author Guilherme Artioli

No final dos anos 1960, Guy Debord defendeu em seu livro “A Sociedade do Espetáculo” que estávamos vivendo uma era de espetacularização das vidas e hipervalorização das imagens. Segundo ele, essa lógica regia, inclusive, a forma como nos relacionávamos com as pessoas. Poucas ideias envelheceram tão bem, já que, desde a publicação desse livro, as redes sociais tomaram nossas vidas de assalto, e hoje dominam de forma quase absoluta as relações sociais. Na esteira dessa crescente espetacularização da vida, qualquer ato, por menor e mais trivial ou cotidiano que seja, como uma simples ida à academia, passa a trazer consigo uma certa pressão para que também se torne um espetáculo.

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Assim, nos sentimos compelidos a apresentar um desempenho ótimo, ou “performar”, em quase tudo o que fazemos. O mesmo vale para nosso corpo, que precisa estar em conformidade com padrões de magreza e muscularidade cada vez menos naturais e inatingíveis.

Não à toa, tem crescido nos últimos anos o uso de recursos artificiais que supostamente dão uma forcinha àqueles que buscam melhorar seu desempenho nos treinos – são os chamados recursos ergogênicos. Nesse grupo, destacam-se os suplementos alimentares (não tratarei de drogas aqui, um capítulo à parte) e uma infinidade de produtos que trazem as mais diferentes combinações de ingredientes. Apesar do forte apelo de marketing, a maioria desses produtos não funciona como prometido, e muitos sequer funcionam.

Dentre os suplementos alimentares voltados ao mercado fitness, uma categoria é particularmente popular: a de pré-treinos. Ainda que cada produto traga sua combinação própria de ingredientes e doses, quase todos têm três características em comum: a presença de creatina, beta-alanina e cafeína.

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Esses são três suplementos que sabidamente podem melhorar o desempenho físico, cada qual agindo de forma diferente no nosso corpo. A creatina e a beta-alanina atuam em médio e longo prazo, e não de forma imediata. Ou seja, seu consumo precisa ser repetido para que leve a (pequenos, diga-se) ganhos de desempenho.

Se creatina e beta-alanina não têm efeitos imediatos, não há qualquer razão para considerar seu consumo pré-treino. A cafeína, por outro lado, cumpre os requisitos para ser considerada um suplemento pré-treino.

Usar suplemento de cafeína antes do treino pode ter impacto no desempenho físico, mas é preciso alinhar expectativas. Foto: Love Employee/Adobe Stock

Como a cafeína age

Droga mais consumida no mundo, ela é rapidamente absorvida pelo intestino, e cerca de 30 a 60 minutos após ser ingerida já atinge seus valores máximos no sangue. Ela atua como antagonista de uma molécula específica em nosso organismo: os chamados receptores de adenosina. Eles são encontrados em diversas partes DO corpo: sistema nervoso, músculos, coração e tecido gorduroso, para citar alguns. Isso explica porque a cafeína tem tantos efeitos diferentes, além de ser o único suplemento alimentar com potencial de melhorar o desempenho em inúmeros tipos de exercícios: de força, aeróbios de longa duração (intensidade moderada) e anaeróbios (alta intensidade) de curta duração ou intervalados.

Outra característica peculiar da cafeína é que, apesar de ser rapidamente absorvida, ela é eliminada de forma consideravelmente lenta. Para ter ideia, o chamado “tempo de meia-vida” da substância dura cerca de 6 horas. Isso significa que, se você consumir doses altas, ainda pode ainda pode ter quantidades significativas de cafeína em seu sangue. Além disso, quando metabolizada, ela é convertida em outros compostos similares, mas com atividade biológica ainda maior. Em outras palavras, mesmo quando a cafeína tiver saído do seu sangue, você ainda poderá sentir seus efeitos.

Por um lado, isso pode até ser positivo – afinal, se o que você busca é melhora de desempenho, a cafeína realmente é capaz de entregar tal efeito. Por outro lado, há alguns inconvenientes. Como se sabe, um dos efeitos colaterais mais comuns da cafeína é a indução de um estado de alerta, o que atrapalha o sono. Uma revisão sistemática da literatura mostrou que o consumo da substância reduz o tempo total de sono em 45 minutos na média, além de levar a perdas na qualidade do sono.

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Para evitar prejuízos no descanso noturno, recomenda-se que a última xícara de cafezinho (que fornece cerca de 100 mg de cafeína) deve ser consumida, no máximo, nove horas antes de dormir. Já doses maiores (400 mg, como se costuma ingerir em suplementos esportivos) podem prejudicar o sono mesmo quando ingeridas 12 horas antes de dormir. Há, portanto, uma preocupação com um potencial ciclo vicioso, em que a pessoa consome cafeína porque se sente cansada e dorme mal porque consumiu cafeína – o que potencializa seu cansaço e a faz consumir ainda mais cafeína.

Em tempo: pouca diferença faz para o desempenho se a cafeína é consumida na forma de suplemento ou pelas bebidas cafeinadas, desde que as doses sejam as mesmas. Mas vale a ressalva de que podem ser necessárias de quatro a cinco generosas xícaras de café para chegar nas doses fornecidas pelos suplementos.

No fim das contas, apesar dos inconvenientes, a cafeína pode, sim, melhorar o desempenho. Mas é fundamental situar o leitor sobre qual tipo de melhora estamos falando. A cafeína, assim como os poucos suplementos que têm algum efeito ergogênico, tem eficácia bastante limitada, e melhora a capacidade de realizar exercícios em cerca de 5%. Se você não é um atleta competidor, essa melhora provavelmente não é importante – talvez não seja nem perceptível. No fim das contas, seu treino não precisa ser um espetáculo para que seja espetacularmente benéfico à sua saúde.

Opinião por Guilherme Artioli

Bacharel, mestre e doutor em Educação Física pela Universidade de São Paulo (USP). É pesquisador do Grupo de Pesquisa em Fisiologia Aplicada e Nutrição da Faculdade de Medicina da USP e professor do Instituto de Ciência Biomédicas da USP.

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