SÃO PAULO - A artista plástica Isabella Hohagen, de 49 anos, enche um balde e uma bacia com água todas noites. Desde a crise hídrica em São Paulo (entre 2014 e 2016), ela enfrenta desabastecimento entre as 22 e as 6 horas e, com a pandemia do novo coronavírus, decidiu aumentar a reserva diária para garantir a higiene necessária. “Minha mãe (Adília, de 74 anos) que acorda às 5 (horas) da manhã sente porque tem de esperar para tomar banho, não pode nem lavar o rosto.”
Relatos semelhantes são frequentes entre moradores de casas de áreas mais altas de bairros das zonas norte, sul, leste e oeste da cidade de São Paulo, que enfrentam falta de água diariamente por causa da redução de pressão adotada pela Sabesp e da falta de caixa d'água. Para especialistas, a medida precisa ser revista durante a pandemia, em que a água corrente e o sabão são os principais combatentes do covid-19. Procurada, a Sabesp informou que está “readequando os parâmetros técnicos” para atender a todos.
No sábado, 28, o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas) incluiu a interrupção da redução da pressão de redes de água, especialmente em favelas e periferias, como umas das dez medidas “emergenciais e estratégicas” que precisam ser tomadas na área de saneamento básico e água durante a pandemia. As indicações estão em uma carta direcionada ao poder público e a empresas do setor.
Professor de Engenharia Hídrica da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Antônio Eduardo Giansante considera que a redução de pressão é uma medida eficiente para reduzir as perdas de água, mas que deveria ser suspensa durante a pandemia. “Em uma emergência, como a de agora, é preciso buscar formas de suprir o desabastecimento.”
Ele explica que a redução da pressão é adotada porque o menor consumo durante a noite aumenta a pressão interna da rede, que, por ser antiga, acaba sofrendo vazamentos. Por isso, defende que a suspensão da medida ocorra durante a pandemia e que seja combinada com a distribuição de caixas d’água, com capacidade para suprir o abastecimento por 24 horas.
O infectologista Leonardo Weissmann, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia e médico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, também ressalta a importância do acesso pleno à água corrente durante a pandemia e diz que o armazenamento em recipientes (como baldes) exige maiores cuidados para evitar a contaminação. “Essa falta de água corrente acaba prejudicando, deixando as pessoas mais vulneráveis.”
Outro risco de manter esses recipientes em casa é o de disseminar a dengue, uma vez que a água parada serve de criadouro para o mosquito Aedes aegypti, transmissor da doença. O Ministério da Saúde já admite a preocupação de lidar com três epidemias ao mesmo tempo nas próximas semanas: covid-19, dengue e a influenza (gripe comum).
O próprio site da Sabesp aponta que a redução de pressão pode causar “longas horas sem água nas torneiras” para o que chama de uma “minoria da população”. A maioria dos casos envolve desabastecimento entre a noite (por volta das 22 e 23 horas) e o início da manhã (entre 5 e 6 horas).
Só em fevereiro, a companhia recebeu 8.684 reclamações de falta d’água, embora os relatos ouvidos pelo Estado sejam de moradores que já desistiram de reverter a situação ao longo dos anos. Das 15 subdivisões da capital, a maioria das queixas se concentra nas seguintes: São Miguel (1.317), Itaquera (1.181), Sé (1.016), Mooca (762), Butantã (663) e Santo Amaro (598).
Moradores adaptam hábitos para lidar com falta d'água
Com os desabastecimento, os moradores precisam mudar os hábitos para não depender de água corrente. “Meu esposo é motorista de ônibus e chega de madrugada. Como não tenho caixa (d’água), tenho de deixar balde com água para ele se higienizar”, conta Gabriela Lunardello, moradora da Ponte Rasa, na zona leste.
A confeiteira Deborah Santos, de 56 anos, comenta que sempre precisa "correr para não deixar louça" antes das 23 horas. “Gosto muito de cozinhar à noite e já não posso fazer muita coisa por conta disso. Faço toda higienização durante o dia”, relata a moradora de Perdizes, na zona oeste.
Já, na casa do comerciante Syrin Ali, de 34 anos, só um dos dois banheiros, o conectado à caixa d'água, pode ser utilizado à noite. "Mal dá para lavar louça, tem de deixar até a água chegar”, relata o morador da Penha, também na zona leste. "Dificulta na lavagem da casa, do quintal, da escada."
A autônoma Solange Moretto, de 54 anos, guarda água em garrafas na cozinha para "alguma emergência", pois a caixa d’água não atende à cozinha. "Às vezes me revolto, tenho vontade de mudar", conta ela, que vive a vida toda no bairro de Limão, na zona norte.
Sabesp diz estar ‘readequando os parâmetros técnicos’ e pede registro de queixas
Em nota, a Sabesp afirmou que tem verificado as notificações recebidas de falta de d’água e que está “readequando os parâmetros técnicos” para atender a todos. “Para isso, a empresa pede que os moradores entrem em contato pelos canais digitais e pela central de atendimento telefônico, que, por causa da pandemia de covid-19, foram fortalecidos para atender à população.”
A companhia também ressaltou a existência de uma norma da ABNT que recomenda que toda residência tenha uma caixa d’água. A companhia recebeu uma doação de 2,4 mil unidades do item de duas empresas, que serão distribuídos durante a pandemia em áreas carentes. Além disso, alegou que o consumo de água aumentou em 6% em março em relação à média do ano passado, o que atribui ao isolamento social durante a pandemia.
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