Ultraprocessado não é alimento e deveria ter imposto maior, defende brasileiro que criou o termo

Considerado um dos cientistas mais influentes do mundo, o epidemiologista Carlos Augusto Monteiro alerta que estamos em um cenário de transição, no qual os ultraprocessados ocupam um espaço cada vez maior na mesa dos brasileiros

PUBLICIDADE

Por Ocimara Balmant
Atualização:
Foto: Tiago Queiroz/Estadão
Entrevista comCarlos Augusto MonteiroEpidemiologista da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP)

Há cinco anos, o médico epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) figura na lista dos pesquisadores mais influentes do mundo. No ano passado, foi o brasileiro com os artigos científicos mais citados em revistas e estudos científicos internacionais.

A fama é oriunda da NOVA, a classificação proposta por Monteiro que revolucionou a forma como os alimentos são categorizados. “Começamos a identificar que a origem das doenças ligadas à alimentação estavam num grupo de produtos sobre os quais a indústria têm um lucro muito maior, na medida que são feitos com ingredientes de baixo custo e grande durabilidade”.

Nascia, em 2009, o conceito de ultraprocessado. Uma palavra enorme, mas que Monteiro define de forma simples: ultraprocessado é um produto feito com ingredientes que não encontramos na cozinha doméstica, como aditivos para substituir a cor, dar aroma e conferir determinada textura a um alimento.

A classificação também mudou a forma como se enxerga a relação do consumidor com a comida: se antes a pessoa física era vista como a única responsável pelas escolhas alimentares, agora os CNPJs precisam assumir a parte que lhes cabe nas mazelas resultantes da alimentação inadequada.

Publicidade

Confira a entrevista completa.

Consumo de ultraprocessados no Brasil ainda é menor do que em países como EUA e Inglaterra, mas cenário é considerado preocupante. Foto: _KUBE_/Adobe Stock

Como a NOVA mudou na prática a relação entre indústria e qualidade da alimentação?

O paradigma anterior tinha o foco em nutrientes – basicamente em gordura saturada, açúcar, sal e fibra – e de alguma maneira culpava o próprio consumidor pelo fato de não ter uma alimentação muito saudável.

Era um pouco assim: as pessoas preferem alimentos com muito sal, pouca fibra e muito açúcar e, por isso, acabam adoecendo. Quando a gente começa a fazer uma classificação dos alimentos não só pelo teor de nutrientes, mas também pela forma de processamento, começa a colocar a responsabilidade em quem processa esses alimentos. O foco sai do consumidor e vai para a indústria, que usa estratégias de marketing muito sofisticadas para que as pessoas troquem a alimentação tradicional pelo consumo de ultraprocessados.

Que indústria é essa?

São as grandes indústrias transnacionais dentro do sistema alimentar. Porque um fator importante é que o ultraprocessamento requer maquinários, tecnologias, controle de qualidade e mesmo ingredientes – como aditivos – que são de acesso restrito.

Publicidade

E uma coisa mais sutil é que você consegue fazer um produto único, um produto de marca. Tanto que é comum receitas com segredos industriais.

E o nome é “produto” porque, pela composição, o ultraprocessado nem deve ser considerado um alimento, certo?

Sim. Primeiro, que você tem muitos ingredientes: dez, quinze, vinte, até trinta. Depois, você manipula misturas de sal, gordura, açúcar, aromatizantes, texturizantes e consegue criar produtos de baixo custo para a indústria, mas que são extremamente palatáveis. Essas indústrias têm laboratórios de análise sensorial que permitem chegar a receitas com combinação de gordura e açúcar que maximizam o prazer e que se tornam mesmo viciantes para algumas pessoas.

O cenário no Brasil é preocupante, mas ainda consumimos menos ultraprocessados do que países como os Estados Unidos e a Inglaterra.

A vantagem, nesse caso, seria o fato de o preço dos ultraprocessados ainda não estar tão baixo por aqui?

O preço é uma questão, mas a grande diferença é que, no Brasil, o consumo de ultraprocessados não chegou às principais refeições. Consumimos refrigerantes e sorvetes, mas, no almoço e jantar, a cultura alimentar ainda é muito forte. A maior parte dos brasileiros ainda come o PF (prato feito), a comida por quilo.

Publicidade

O alerta é que estamos num processo de transição, até porque estudos mostram que o preço relativo dos ultraprocessados aumentou muito menos do que o de alimentos in natura ou minimamente processados. A tendência é ruim.

Nesse aspecto, podemos considerar que há um público mais suscetível, como as crianças e os jovens, por exemplo?

O que percebemos no recorte por idade é que, quanto mais velho, menor o consumo de ultraprocessados. Quanto mais jovem, maior. Os adolescentes são o grupo com o maior consumo.

Na semana passada, saiu um estudo na Inglaterra de uma coorte em que olharam as crianças com dois e, depois, com sete anos. O que se viu foi um aumento no consumo de dois para sete e também uma correlação muito grande: a criança de dois que comia muito ultraprocessado é a criança de sete com consumo mais elevado.

Isso mostra que os hábitos e as preferências são criados quando a criança ainda é pequena. Daí o esforço da indústria de ultraprocessados na propaganda ligada a crianças e todo o investimento em textura, cor e aroma. Tudo isso vai criando o que a gente chama de familiaridade, e que vai influenciar os hábitos para toda a vida.

E quais as consequências mais diretas do consumo de ultraprocessados?

Há dois grandes problemas: no ultraprocessado, você não tem o alimento inteiro, e é importante você comer junto a fibra, os antioxidantes e a proteína, por exemplo. Quando você separa essas coisas, o nutriente não funciona da mesma maneira.

Publicidade

A outra questão é que, por não ter o alimento integral, o ultraprocessado tem muitos aditivos para substituir a cor, o aroma e a textura. Então, você não tem o alimento integral e tem uma série de substâncias químicas estranhas ao alimento.

Agora, imagina a criança que começa essa trajetória logo cedo, a quantidade de aditivos que vai consumir ao longo da vida. É uma coisa cumulativa. Talvez o consumo seria inócuo se fosse numa quantidade pequena, mas imagina o volume…

E daí podemos falar do que se chama “princípio da precaução”?

Isso. Como a relação entre saúde e alimentação é complexa, a gente nunca vai conhecer tudo. Talvez a maioria dos aditivos não seja problemática, mas certamente alguns são. Então, na medida em que você aumenta a exposição do seu organismo a algo que ele não está programado (para receber), aumenta a probabilidade de ter algum tipo de problema. O princípio da precaução é esse: você tem a possibilidade de não consumir aditivos e ficar menos exposto a problemas.

E como barrar esse consumo?

Os produtos estão ficando cada vez mais baratos, com mais propaganda, e cada vez mais palatáveis e irresistíveis. Então, se tem uma série de forças caminhando no sentido de empurrar as pessoas para o aumento do consumo de ultraprocessados, a gente precisa criar uma força oposta em muitas frentes para desnormalizar esse consumo.

Publicidade

Um ponto é a reforma tributária: todos os ultraprocessados deveriam ter um imposto maior e, por outro lado, isentar ao máximo os alimentos naturais e minimamente processados.

A outra grande questão é a publicidade. Faz sentido que haja propaganda infantil com o uso de heróis para aquele produto já rotulado como alto em açúcar, alto em sódio e em gordura saturada?

E, por fim, a rotulagem de advertência precisa ser intensificada. A Anvisa está avaliando a possibilidade de acrescentar na rotulagem de advertência os corantes, aromatizantes e adoçantes artificiais. E daí, penso eu, uma estratégia seria proibir a publicidade de todos os produtos com essa rotulagem de advertência.

E ninguém iria a falência por isso…

Exato. Porque não é que a indústria queira fazer um alimento para as pessoas ficarem doentes. Obviamente que não. A indústria teria interesse que as pessoas ficassem saudáveis. O problema é que o lucro é uma coisa tão poderosa que a indústria tenta normalizar uma coisa que não é normal.

Publicidade

Durante milhões de anos, tivemos uma alimentação sem aditivos, por que agora a gente precisa? A gente não precisa. Quem precisa é a indústria. Porque o aditivo faz parte do modelo de negócios, faz com que o produto dure anos, e isso é lucro. Ela pode estocar, transportar por longas distâncias, usar ingredientes de baixo custo. O objetivo é mostrar que o consumo é inevitável. Só que não. É absolutamente possível você ter uma alimentação sem esses aditivos todos.

O que é uma alimentação saudável?

Há várias maneiras de ter uma alimentação saudável, o importante é seguir alguns princípios. Um deles é você consumir o alimento inteiro, o mais próximo possível de como está na natureza. O outro princípio é você diversificar, consumir alimentos de várias ‘famílias’. Decidir qual é a verdura ou a fruta é uma questão de cultura e de preferência. O que não se pode é ter uma dieta monótona… ou cheia de aditivos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.