A minutos da sede da COP-30 em Belém, comunidade esvazia após poluição do rio: ‘Vila fantasma’

Ribeirinhos da região metropolitana da capital do Pará não conseguem mais pescar e lutam para sobreviver; empresas de distrito industrial negam sujar a água e dizem seguir leis. Governos locais afirmam fiscalizar atividades

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Foto do author Paula Ferreira
Atualização:

ENVIADA ESPECIAL A BELÉM E BARCARENA- A água suja que o barco deixa para trás carrega um cheiro forte, denunciando que o rio já não é mais o mesmo. Ao navegar pelo igarapé Piraíba, em Belém, o odor não é o único aspecto a revelar sua condição, algumas casas à beira das águas, antes ocupadas por ribeirinhos, hoje estão vazias.

Degradado pela ação humana, o Piraíba, afluente do Rio Maguari, cerca de 20 minutos do local que está sendo construído para receber no ano que vem a Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP-30) na capital do Pará. No futuro parque, chefes de Estado decidirão sobre estratégias e metas para salvar o planeta. Na comunidade Amapi, às margens do igarapé, já se veem os efeitos da degradação ambiental na Amazônia.

Comunidade Amapi, às margens do Rio Piraíba, na Grande Belém, sofre com poluição das águas Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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O igarapé fica no distrito industrial de Icoaraci, região de Belém que reúne cerca de 30 empresas de construção naval, extrativismo, metalurgia, beneficiamento de madeira, curtumes, entre outras. Em meio à intensa atividade industrial, moradores dizem que o rio é recorrentemente contaminado pelo despejo de dejetos das fábricas, como o Curtume Ideal, que produz couro bovino; e a Repar- Reciclagem industrial de resíduos de animais, produtora de óleo e ração de peixe.

A Repar nega as acusações. Afirma que tem todas as licenças necessárias e diz que suas operações são submetidas a vistorias periódicas da delegacia de meio ambiente e do Ministério Público.

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Já o Curtume Ideal afirma que suas operações cumprem a lei ambiental e destaca ter estação de tratamento de efluentes. Diz ainda que os problemas relatados não têm origem no Curtume.

Perto dali, a Couro Norte também é apontada como responsável por despejar rejeitos no Igarapé Uxiteua. O Estadão não conseguiu contato com a empresa.

O Ministério Público do Pará (MPPA) acompanha três ações judiciais contra empresas acusadas de poluir a região, que se arrastam há 18 anos. Segundo o órgão, “há provas de que houve dano ambiental na região.” O MP pediu absolvição do Curtume Ideal após laudo de 2021 afirmar que a empresa havia parado de lançar substâncias no rio. No dia 3, a Justiça absolveu a Ideal. A promotoria pediu, porém, a condenação da Couro Norte por despejar produtos no Igarapé Uxiteua.

A Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Belém afirma que as empresas ao redor do Piraíba foram fiscalizadas e não foram comprovadas as denúncias.

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Já a pasta estadual de Meio Ambiente do Pará diz que a Repar assinou Termo de Ajustamento de Conduta para alterar seu local de produção. O Curtume Ideal, segundo a pasta, tem licença ambiental válida até este ano. Afirma ainda que está estruturando o programa Pró-Rios, criado ano passado, para preservar rios.

“Foi todo mundo indo embora por isso. Antes tinha muitas pessoas. Na beira do rio, tudo era lugar de casa que o pessoal abandonou”, desabafa João Pinheiro, 81 anos, morador da comunidade Amapi há 30 anos. “Está virando uma vila fantasma.”

Pescador João Pinheiro, de 81 anos, conta ter perdido boa parte da renda por causa da degradação do rio Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Ele conta que o processo de degradação do rio se intensificou há cerca de 15 anos. Aos poucos, os peixes e camarões sumiram, assim como boa parte dos moradores. Testemunha do adoecimento do igarapé, seu João permaneceu no local onde construiu sua casa, mas passou a pescar em outro lugar.

Agora, mesmo aos 81 anos, no início da semana parte para outra comunidade onde a pesca ainda é viável e fica em casa no sábado e no domingo. “Meus filhos todos foram criados na água boa e agora os netos não podem nem tomar banho”, lamenta.

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Aqueles que se aventuram a mergulhar no rio relatam problemas de pele e outras mazelas. Mas não é necessário entrar na água para ver que há algo de errado. Além do cheiro forte de restos de animais, a mudança visual é nítida: pedaços de pele boiam, a água borbulha, e uma espuma se forma em alguns trechos.

Além do cheiro forte, no Rio Piraíba é possível ver pedaços de pele e trechos com espuma Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Maria Olgarina Pinheiro, de 57 anos, é uma das filhas de João criada na “água boa” e também tem a pesca como fonte de renda. Ela conta que viu o cenário mudar ao longo dos anos. “Hoje, onde tem peixe para pegar? Em canto nenhum”, diz ela. “Não tem mais um camarão para comer. O rio está morto.”

Os moradores relatam ver dutos clandestinos para despejar dejetos no igarapé. Segundo eles, as tubulações aparecem só na maré baixa. A Repar nega ter tubulações ligadas ao Rio Piraíba ou a qualquer outro córrego e diz que o “descarte de água é feito internamente e segue rigoroso sistema de filtros, em conformidade com exigências legais.”

O Curtume Ideal também refuta as acusações e diz ter uma estação para tratar efluentes. O Estadão não localizou a Couro Norte.

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Os ribeirinhos afirmam que não querem que as empresas necessariamente saiam de lá, mas que atuem de acordo com a lei para proteger o ambiente. A relação é complexa, porque algumas pessoas conseguem emprego na indústria ao redor. A reportagem ouviu relatos de trabalhadores do curtume que afirmam ter visto o despejo da sujeira no rio.

Há nove anos, Nazareno Lobato, de 62 anos, construiu uma pequena casa na beira do Rio Piraíba. Na época, a poluição já estava em curso, mas ainda era possível desfrutar das águas do igarapé. Desde essa época, Nazareno preside o Instituto Vida Pará e luta para que esse pleito ganhe repercussão e chegue às autoridades.

O ativista ambiental Nazareno Lobato luta pela preservação dos rios na Grande Belém Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Em novembro do ano que vem, Belém receberá o mais importante evento climático do mundo. A COP-30 terá a missão de fixar novos parâmetros de contribuição dos países no sentido de reduzir emissões de gases do efeito estufa e frear o aquecimento global. Com a proximidade da COP-30, Nazareno vê uma contradição.

“É como se fizessem uma festa e não limpassem o próprio quintal da casa. É difícil de aceitar”, critica. ”Quando a maré seca fica aquela coisa podre, como se fosse uma fossa viva.”

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Aos poucos, com a escassez de peixes e o mau cheiro, moradores foram deixando a comunidade  Foto: Tiago Queiroz

Belém tem 14 bacias hidrográficas. Isso traz uma necessidade de atenção ainda maior com os recursos hídricos na região, formada por diversas ilhas. Carlos Alexandre Leão Bordalo, professor da faculdade de Geografia e Cartografia da Universidade Federal do Pará (UFPA), explica que as características geográficas da cidade favorecem a disseminação rápida da contaminação.

“Cerca de 40% das terras localizadas na área central são terras onde os solos são hidromortos, sedimentares, ou seja, solos frágeis onde há muita infiltração. Cada vez que tem lançamento de efluentes liquidos, seja de origem doméstica, pela falta de esgoto, ou por industriais, há um nível de contaminação elevado”, diz.

Degradação ambiental leva fome a territórios ribeirinhos de Barcarena

Além do distrito industrial de Icoaraci, o Pará tem três distritos industriais: em Ananindeua, Marabá e Barcarena. Juntos, no ano passado, esses polos responderam por cerca de 11% do Produto Interno Bruto (PIB) do Estado.

A alguns quilômetros do Rio Piraíba, próximo ao distrito industrial de Barcarena, o cenário de penúria dos ribeirinhos é semelhante. Numa quarta-feira de julho, a geladeira de Shirle Costa, 32 anos, amanheceu vazia. Para dar comida aos filhos, vendeu alguns copos novos que tinha em casa.

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Shirle Costa Silva viu diminuir drasticamente a pesca de camarões na região da Ilha de São João, na Vila do Conde Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Desde que o igarapé Dendê, na comunidade Ilha São João, em Barcarena, apodreceu, os matapis — espécie de cestos utilizados para pegar camarão — estão encostados na frente da casa. O sumiço dos peixes e dos crustáceos deixou o prato da família Costa cada vez mais vazio. Hoje, a renda principal da casa vem do Bolsa Família, que paga pouco mais de R$ 600 pelos dois filhos de Shirle.

“Tem dia que amanheço sem um centavo para comprar pão para meus filhos. Não tem nada. Ontem tive de vender coisas minhas de dentro da casa para comprar alimento para meus filhos”, conta ela, que hoje lidera a Associação de Pescadores e Ribeirinhos da Ilha São João.

Na Ilha São João muitas coisas mataram a água do Igarapé Dendê:

  • a falta de saneamento básico com o esgoto dos banheiros a céu aberto;
  • desastres, como o naufrágio de um navio com cinco mil bois a bordo, em 2015;
  • a mineração, com o despejo de rejeitos de caulim nas águas.

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Desde 2004, pelo menos nove ocorrências envolvendo vazamento de rejeitos e contaminação do Igarapé Dendê pela empresa Imerys foram identificadas. Os impactos ambientais foram alvo de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Pará em 2018.

Em nota, a Imerys, que agora opera com o nome Artemyn, diz que segue a lei sobre tratamento de efluentes. Afirma ser vistoriada pela agência ambiental regularmente e monitorar as bacias de rejeitos 24 horas por dia. Acrescenta que deu assistência à população atingida pelos episódios e oferece projetos sociais voltados à geração de renda, educação ambiental, comunicação social, educação básica e capacitação de mão de obra às comunidades vizinhas.

Nos fundos das casas de palafita, pequenos barracos de madeira são o banheiro das famílias. Todas as necessidades feitas ali caem na várzea e são levadas quando a maré sobe. Segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Região Norte tem os piores índices de saneamento básico. Menos de um quarto da população tem destinação correta do esgoto. No País, 1,2 milhões de pessoas não têm banheiro em casa.

A realidade da Ilha São João contrasta com a riqueza financeira que circula pelo Porto de Vila do Conde, em Barcarena, onde toneladas de minério produzidas no distrito industrial são transportadas diariamente. “Meu esposo e eu já cansamos de colocar currículo nessas empresas e nada”, lamenta Shirle, que cursou até o 5º ano do ensino fundamental.

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Pedro Silva sente falta de pegar os peixes graúdos Foto: Tiago Queiroz/Estadão

A vida dos pescadores de Barcarena não foi impactada apenas pela poluição nos rios e igarapés, mas também pelo trânsito de grandes navios no porto, tornando a pesca mais arriscada.

“Antigamente, pegava peixes mais graúdos e agora está em falta. Caiu minha renda e só trabalho com pesca”, relata o Pedro Silva, de 54 anos, às margens do Rio Pará, enquanto se preparava para enfrentar mais um dia de trabalho.

Maria Madalena Vasconcelos contra que os pescadores têm medo de colocar o espinhel — espécie de linha com anzóis usada para pescar— e sofrer acidente. “Tem muito navio e eles têm medo de ir e o navio bater.”

Paulo Feitosa, presidente do Instituto de Ribeirinhos do Pará, cobra mais atenção das autoridades. “Estamos sendo usados como garotos-propaganda, mas não estamos sendo ouvidos para saber o que queremos como benefício da COP-30″, diz.

A prefeitura da cidade afirma que até 2025 fará tratamento de esgoto em 90% do território. O programa “Trata Bem Barcarena” inclui a destinação de água potável para 99% da população e terá investimento de R$ 150 milhões. Serão construídas seis novas estações de tratamento.

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