ENVIADA ESPECIAL A MARITUBA (PA) - Todo dia, 1.050 toneladas de lixo saem de Belém, rumo ao aterro sanitário de Marituba, cidade de pouco mais de 100 mil habitantes na região metropolitana. Na Rua Liberdade, que faz divisa com o aterro, o baque dos veículos pesados que entram e saem do local é o ingrediente sonoro da poluição, que se espalha pelo ar com o mau cheiro que invade as casas no fim da tarde.
Da rua, é possível ver o amontoado de lixo sob ronda constante de urubus, um dos animais da nova fauna ao redor, que inclui ratos e mosquitos. Antes, a terra salpicada de lixo era vegetação, “tudo mato”, dizem os vizinhos do aterro.
“Minha esperança é de que eles saiam (o aterro) ou a gente saia”, desabafa Milene Nunes, 29 anos. ”Nossas roupas estavam todas dentro de tambores, por causa dos ratos. Eles roem nossas roupas; fazem ninho.”
A prefeitura de Belém disse que contratou empresa para implantação de um novo aterro em 2025. A prefeitura de Marituba não respondeu. A empresa nega danos aos vizinhos e diz fazer monitoramento geotécnico e de emissões (leia mais abaixo).
A 11 quilômetros da capital, Marituba tem se convertido em uma “zona de sacrifício” de Belém, sede da próxima Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP-30). Para suprir suas demandas, a metrópole amazônica empurra para o município vizinho empreendimentos como aterro sanitário e cemitérios, que causam danos ambientais e fragilizam uma população já vulnerável.
Aterro polêmico
O aterro de Marituba recebe diariamente 1,3 tonelada de lixo, da qual 70% vem de Belém e o restante de Ananindeua e da própria cidade. Desde 2015, a prefeitura da capital passou a jogar seu lixo no aterro da cidade e as queixas se multiplicam. Doenças, rachaduras nas casas e barulho compõem a lista de danos que os moradores de Marituba atribuem ao aterro.
Na vizinhança, as pessoas se adaptam como podem. Além de guardar roupas em tambores, Milene improvisou uma armadilha com pregos e um fio desencapado para evitar que ratos entrem no fogão. Mãe de dois filhos, um de dois anos e outra de dez, ela diz que tosses e problemas respiratórios são constantes. “As crianças vivem doentes.”
O filho mais novo acumula manchas na pele em decorrência de picadas de insetos, cada vez mais abundantes no entorno do aterro. Nas casas ao lado, rachaduras começaram a aparecer nas paredes. No dia em que a reportagem foi ao local, moradores construíam pilares para reforçar a estrutura e evitar que suas casas desabassem.
Nos arredores do aterro, boa parte das pessoas se sente esquecida. “Quando os carros pesados passam, a gente sente tremer. O pessoal diz que é isso, porque não é só aqui, a maioria das casas está assim. Mas a minha está pior. Tenho até medo”, conta Tereza Fontel, 59 anos.
Mãe solo, Tereza vive do dinheiro do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que recebe para cuidar do filho com deficiência. Ela também complementa a renda com o bico como catadora de material reciclável. Como os vizinhos, reclama dos efeitos do aterro na saúde da família.
“Quando está forte o fedor de gás, afeta a garganta do meu filho. É gás, cheiro de coisa podre, tudo misturado. Depois que esse ‘lixão’ chegou, acabou com tudo”, lamenta.
Estudo feito em 2023 pelo pesquisador Breno Imbiriba, da Universidade Federal do Pará (UFPA), mostra que o “fedor” vem acompanhado de gás sulfídrico e metano. Segundo ele, a medição indicou que moradores do entorno do aterro são submetidos a uma exposição ao gás sulfídrico maior do que a considerada aceitável pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Em relatório entregue ao Ministério Público do Pará, ele diz que “o gás sulfídrico provavelmente é o causador de problemas respiratórios e oculares relatados”.
A pesquisa mostrou que todas as pessoas a um raio menor de cinco quilômetros do aterro estariam submetidas a uma concentração “inaceitável” de gases. O pesquisador rebate um relatório feito pela empresa Guamá Tratamento de Resíduos, responsável pelo aterro. Segundo ele, a concentração média de gás sulfídrico verificada na pesquisa é cerca de 30 vezes maior do que a estimada pela Guamá. Imbiriba explica que o aterro já começou errado. Segundo ele, uma estrutura como essa nunca deve ser construída próximo a uma área urbanizada e povoada.
“Todos os gestores públicos têm de escolher a localização do aterro com sabedoria para minimizar o dano, porque ele sempre vai acontecer. O aterro gera um passivo ambiental grande e pode ser minimizado. O primeiro fator é colocar o máximo distante possível de áreas habitadas”, ressalta.
Em 2017, o Ministério Público do Pará (MP-PA) entrou com ação civil pública para cobrar a regularização das atividades do aterro. Na ocasião, solicitou pesquisas para medir o impacto na saúde das pessoas e no meio ambiente. Naquele mesmo ano, a Operação Gramacho, conduzida pelo órgão em parceria com Polícia Civil, prendeu dois diretores do aterro sob acusação de responsabilidade em crimes ambientais no local.
Na época, a polícia apurou que a empresa despejou chorume bruto no solo, sem tratamento, contaminando um igarapé na região. Desde então, a empresa assinou Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) para se adequar, como a realização do tratamento do chorume do aterro.
A briga sobre o aterro de Marituba envolve tantas camadas que até a própria empresa batalha na Justiça para não receber mais lixo no local. Em 2019, a Guamá Tratamento de resíduos anunciou que interromperia atividades por dificuldades na operação. Na época, o MP-PA pediu o bloqueio de R$ 100 milhões da empresa. Desses, segundo o órgão, R$ 20 milhões foram efetivamente bloqueados.
Em seguida, a Guamá entrou em um acordo costurado pela Justiça para prorrogar o funcionamento do aterro até 2021. Depois disso, o prazo foi prorrogado pelo menos três vezes até chegar no período vigente: fevereiro de 2025, apesar das manifestações contrárias por parte do MP.
A empresa segue tentando interromper as atividades, alegando ainda que os valores pagos pela prefeitura estão defasados e sofrem atrasos. Neste ano, houve dia em que a Guamá até fechou os portões para os caminhões de lixo vindos da capital, causando fila de veículos. Se prorrogado o prazo para receber os resíduos a partir de fevereiro de 2025, a Guamá afirma que não terá capacidade para receber o lixo.
“Para receber resíduo precisa implantação de uma nova célula, licença do órgão ambiental, precisa saber se o monitoramento geotécnico está dando ok”, diz Wagner Cardoso, gerente do aterro de Marituba. ”Não temos plano B nem estamos procurando. Somos uma empresa privada e estamos sendo obrigados a ficar em algo que em 2019 dizíamos que não queríamos ficar.”
O gerente nega os danos causados pelo aterro na vida dos moradores. No caso das rachaduras nas casas, Cardoso afirma que a empresa não tem conhecimento do fato, mas que “não existe essa possibilidade.” Segundo ele, a Guamá realiza monitoramento geotécnico que permite verificar a movimentação do solo.
Em relação aos gases, diz ser feito monitoramento das emissões, assim como o tratamento do biogás, que é transformado em energia para o funcionamento do aterro. De acordo com ele, a implantação de mantas de polietileno sobre o entulho também reduziu a quantidade de emissões. “Uma das principais diferenças de um lixão é que temos diversas tecnologias para operar”, diz Cardoso.
Após a publicação da reportagem, a Guamá afirmou que não tem responsabilidade sobre o recolhimento e transporte de resíduos até o aterro. E que a rua Liberdade não é utilizada para transporte de veículos pesados, que, segundo a empresa, trafegam pela rodovia BR-316 e pela alça viária. A empresa disse ainda que relatório recente de monitoramento mostrou que a emissão de gases está abaixo do nível de tolerância estabelecido pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). De acordo com a Guamá, não há necessidade de ações adicionais.
Descarte irregular
Mesmo com um aterro em seu perímetro, Marituba convive com lixões clandestinos para descarte irregular. A reportagem flagrou um caminhão caracterizado com o emblema do governo do Estado do Pará despejando entulho em um igarapé próximo a uma localidade conhecida como “Risca faca”.
Onde antes era o curso do riacho quase não se vê a água, encoberta por sacos de lixo. A reportagem questionou o motorista do caminhão, que disse trabalhar para a prefeitura do município. O Estadão procurou a assessoria de Marituba, mas a gestão não se manifestou.
Já o governo do Pará afirmou que a Secretaria de Meio Ambiente apura o caso e diz que fiscaliza o despejo irregular de resíduos. O Estado informou ainda que oferece um canal para denúncias pelo aplicativo da secretaria.
Problema crônico
O problema do lixo se arrasta desde a coleta até o destino final. Hoje, além de 1,050 tonelada de lixo domiciliar, despejado em Marituba, a cidade produz mil toneladas diárias de entulho.
A coleta seletiva tem cobertura de apenas 3% no município. A expectativa é de que até 2028 essa taxa chegue a 20%. Para isso, a prefeitura afirma que investirá R$ 32 milhões, parte do contrato com a Ciclus Amazônia, que assumiu a limpeza urbana da cidade em abril, e de recursos da Itaipu Binacional.
Mesmo na região mais turística, próxima ao mercado Ver-o-Peso e à Estação das Docas, o gargalo é evidente. A população cita a questão como o principal problema a ser resolvido em Belém. “Se você já deu uma volta pela cidade, sabe como é. O negócio da sujeira é demais. É triste sair na sua cidade e ver muito lixo espalhado ”, critica Douglas Ribeiro, 46 anos, que trabalha em uma loja próxima a esses cartões postais.
Essa crise não é de agora, mas atingiu um ponto crítico no ano passado, quando licitações de coleta foram recorrentemente suspensas pela Justiça, ocasionando interrupção dos serviços e acúmulo de resíduos pelas ruas. Na época, moradores fizeram protestos para cobrar a retomada do serviço. Somou-se a esse problema, a rusga constante da administração do aterro de Marituba com a prefeitura.
A Ciclus Amazônia afirmou que o local onde será implantado o novo aterro ainda está em definição. A empresa não disse qual o prazo para que o aterro fique pronto. A concessão prevê 30 anos de serviços e mais de R$ 700 milhões investidos.
Lixão ainda operante
Antes do aterro de Marituba, a capital despejava todos os dejetos no Aurá, um lixão a céu aberto na divisa de Belém e Ananindeua. Ainda hoje, as pilhas de resíduos jazem no local, emitindo gases. A elas, se somam novos detritos que continuam sendo jogados no lixão mesmo após o fim oficial de sua atividade. Em tese, só entulhos poderiam ser despejados no local. Mas a presença de catadores denuncia que o lixo doméstico ainda é depositado ali.
Já no acesso ao lixão é possível ver sinais de que o Aurá está longe da aposentadoria. Nas ruas ao redor, sacos de lixo doméstico se espalham, fazendo a festa dos urubus e transformando a paisagem. A prefeitura de Belém afirma que realizou diagnóstico inicial do Aurá e, a partir do funcionamento do novo aterro sanitário, ele será desativado. No lugar, “será construído um parque ambiental para a comunidade.”
A impressão de que todos os problemas da capital só encontram “soluções” na cidade vizinha é uma sensação presente entre os habitantes de Marituba. Eles citam, por exemplo, que a cidade absorveu aterro, cemitérios e o Presídio Estadual Metropolitano.
“Esse modelo de desenvolvimento não é um modelo de desenvolvimento humano. É um modelo de desenvolvimento predatório, para acabar com a cidade”, critica Herbert Nascimento, morador de Marituba e ativista ambiental membro do movimento Fora Lixão.
Cemitérios causam impacto
A prefeitura de Belém administra quatro cemitérios na capital . Desses, o Cemitério Parque do Tapanã está com restrição de uso após ação civil pública movida pelo Ministério Público por questões ambientais. O local funciona com sepulturas rotativas, de modo que novas vagas surgem com a exumação de corpos após cinco anos.
A Agência Distrital de Icoaraci (Adic), braço da gestão municipal que administra dois cemitérios, adquiriu sepulturas no cemitério particular Parque Nazaré para “solucionar de forma emergencial o déficit de vagas de túmulos para sepultamentos nos cemitérios municipais”. A prefeitura não informou o número de locais particulares para sepultamento, mas afirma que “a maioria” fica em municípios da região metropolitana - “Ananindeua e Marituba.”
A reportagem visitou cinco dos sete cemitérios de Marituba e conversou com moradores dos arredores. Diferentemente da postura que adotam em relação ao aterro, os moradores não rechaçam a presença dos cemitérios, mas admitem preocupação com a contaminação no solo e na água do entorno. Apenas dois cemitérios são públicos; os demais são privados.
Em 2019, o cemitério privado Parque da Eternidade foi fechado por danos ambientais, após funcionar sete anos sem licença. Em ação civil pública no ano seguinte, o MP-PA citou que, além da poluição do solo e das águas, o cemitério descartava e queimava lixo irregularmente, inclusive com destruição de parte de uma área de proteção permanente nos arredores.
As denúncias, confirmadas pela secretaria de meio ambiente na época, revelaram que havia a queima de pedaços de caixão, roupas de pessoas enterradas e até mesmo restos mortais. Depois, o cemitério voltou a funcionar e foi interditado para realização de novos sepultamentos em 2023 - hoje as atividades estão em curso.
Em resposta à reportagem, o Cemitério Parque da Eternidade afirmou que “todas as licenças ambientais estão em dia” e diz que o Tribunal de Justiça do Pará autorizou o funcionamento regular do empreendimento.
Na decisão, a magistrada que liberou a reabertura do cemitério afirma que o Parque da Eternidade demonstrou que vinha apresentando laudos à Secretaria de Meio Ambiente atestando que as águas subterrâneas não foram contaminadas. A decisão menciona ainda que o cemitério tem licença para operar até 2024.
A prefeitura de Marituba não respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem sobre o tema.