Bolsonaro libera exploração de florestas em terras indígenas a duas semanas do fim do mandato

Instrução normativa passa a permitir “manejo florestal” em terras indígenas, inclusive por não indígenas; especialistas dizem que medida afronta a Constituição

PUBLICIDADE

Foto do author André Borges
Por André Borges
Atualização:

BRASÍLIA - A duas semanas do fim do mandato, o governo Jair Bolsonaro decidiu autorizar a realização de “manejo florestal” dentro de terras indígenas. Na prática, trata-se de permitir a exploração de madeira dentro de áreas demarcadas. Uma instrução normativa que autoriza essas atividades foi publicada nesta sexta-feira, 16, no Diário Oficial da União, assinada pelas presidências do Ibama e da Fundação Nacional do Índio.

De acordo com a instrução normativa, o objetivo é estabelecer “as diretrizes e os procedimentos para elaboração, análise, aprovação e monitoramento de Plano de Manejo Florestal Sustentável Comunitário para a exploração de recursos madeireiros em terras indígenas”.

Indígenas da etnia "satere-mawe" navegam pelo rio Ariau, a 80 km de Manaus, no Amazonas. Foto: Ricardo Oliveira /AFP Foto:

PUBLICIDADE

Principal alvo de explorações ilegais, as terras indígenas são, hoje, a última fronteira na conservação ambiental, onde estão preservadas as maiores áreas de floresta, justamente por serem terras demarcadas. Organizações socioambientais temem que a medida acabe por facilitar ainda mais a exploração criminosa que já ocorre, devido a falhas em fiscalizações e monitoramento dessas atividades, que muitas vezes são usadas para “lavar” a retirada clandestina de madeira.

Pelo texto publicado por Ibama e Funai, a exploração madeireira poderá ser feita por “organizações indígenas ou através de organizações de composição mista”, ou seja, com não indígenas. Segundo Ibama e Funai, “os indígenas se estende a proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros”.

Juliana de Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental, afirma que a instrução foi editada sem consulta às instâncias representativas indígenas e que desconsidera as formas de gestão que os povos fazem de seus territórios.

“Essa instrução permite que entidades compostas por brancos possam fazer manejo florestal nas terras. Isso afronta o usufruto exclusivo que os indígenas têm das riquezas dos rios, lagos e solos, previsto na Constituição Federal”, disse ao Estadão. “O texto também desrespeita o Estatuto do Índio, que proíbe aos não-indígenas a realização de atividades extrativas em terras indígenas. O ato da Funai e do Ibama é absurdo, ilegal, inconstitucional e tenta liberar mais uma boiada no apagar das luzes do governo Bolsonaro.”

Questionado pela reportagem sobre a instrução normativa, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), disse que vai levar o caso para o Supremo Tribunal Federal. “Vamos ao STF para derrubar a medida”, afirmou.

Publicidade

Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas da organização Observatório do Clima, disse que a instrução normativa conjunta “é absolutamente inaceitável”, porque contraria a Constituição e o Estatuto do Índio. “Essa normativa não foi debatida com os povos indígenas, nem com a sociedade. Abre para a participação de não indígenas nos empreendimentos, o que pode colocar em risco os direitos dos povos originários. É uma verdadeira afronta neste fim do mandato. Acredito que tende a entrar logo na lista das revogações do novo governo”, comentou.

Para que o texto seja revogado, é preciso que esse ato seja feito pelos novos presidentes do Ibama e da Funai que assumirão em 2023, porque trata-se de uma decisão publicada pelos dois órgãos.

A ex-ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, disse à reportagem que “o atual governo é incansável em praticar a destruição ambiental” e que “vive da prática de ilegalidades, destruindo o patrimônio público, os direitos dos povos tradicionais e a possibilidade de uma sociedade mais justa, inclusiva e sustentável. Essa é a marca do governo Bolsonaro.”

Beto Mesquita, membro da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, disse que este é “mais um ato absurdo e inconstitucional deste governo, que visa beneficiar apenas os grupos que praticam crimes ambientais dentro de terras indígenas, com ou sem participação ou conivência de lideranças indígenas”.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Mesquita, que também é diretor de políticas e relações institucionais do BVRio, afirmou que este é “mais um ato administrativo na seara agroambiental que precisará ser revogado sumariamente logo na primeira semana do governo que assumirá a partir de 1° de janeiro” e que, por isso, não será necessário levar o caso ao STF, faltando apenas duas semanas para terminar o governo. “Não terá efeito prático neste tempo. É só incluir na lista do revogaço.”

A reportagem questionou o Ibama sobre o assunto, mas ainda não obteve respostas. Após a publicação desta reportagem, a Funai declarou, por meio de nota, que as ações de manejo vão permitir a “divisão das tarefas e dos ganhos entre os integrantes da comunidade” e a que a normativa prevê “consulta prévia” aos indígenas.

Segundo a Funai, “a medida era uma reivindicação antiga de diversas etnias e resultará em mais autonomia para os indígenas, possibilitando ampliar a geração de renda nas aldeias de forma sustentável”.

Publicidade

Ao contrário do que afirma todo o setor socioambiental, a Funai sustenta que a regulamentação ajudará a combater o desmatamento ilegal em terras indígenas. “O manejo florestal é estudado há mais de uma década por instituições e entidades ambientalistas e indigenistas como uma alternativa viável de geração de renda e emprego nas comunidades indígenas”, declarou.

De acordo com a autarquia vinculada ao Ministério da Justiça, o normativo resguarda os costumes e as tradições indígenas, bem como as condições peculiares reconhecidas pelo Estatuto do Índio. “O Ibama e a Funai fiscalizarão, conforme suas competências regimentais, todo o processo de manejo, com base nas regulamentações vigentes. A atividade deverá respeitar os parâmetros legais específicos já estabelecidos para os Biomas da Amazônia e Caatinga, bem como as melhores práticas amparadas pela bibliografia atinente ao bioma Cerrado.”

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.