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De ‘BBB’ de onças a semáforo antipoluição: inteligência artificial pode frear crise climática?

Preservação das florestas e da biodiversidade entram no radar dos softwares, mas risco de mais consumo energético e de desinformação são ameaças com a tecnologia

Por Emilio Sant'Anna
Atualização:

Após mais de uma década no Google, um dos pioneiros no desenvolvimento da inteligência artificial (IA), Geoffrey Hinton, afirma que a tecnologia pode representar uma ameaça “mais urgente” para a humanidade do que a mudança climática. Apesar dessa visão mais pessimista, e todos os desafios éticos e regulatórios, os softwares que simulam a inteligência humana podem ajudar a frear a destruição do planeta?

Entre os programas baseados em IA já utilizados com sucesso, ou em fase de desenvolvimento, estão o combate ao desmatamento e ao comércio ilegal de madeira, a preservação animal e o monitoramento de espécies em perigo, a prevenção a incêndios florestais e desastres naturais, a limpeza do oceano, a gestão de resíduos sólidos e o controle da poluição.

Onça avistada na fazenda Cayman, no Pantanal, em projeto da Associação Onçafari Foto: Albori Ribeiro/Associação Onçafari

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Lembrado nesta segunda-feira, 5 de junho, o 50º Dia Mundial do Meio Ambiente tem como tema “Soluções para a poluição plástica”. Estudo publicado na revista científica Plos One aponta que nada menos do que 171 trilhões de partículas de plástico - o equivalente a 2,3 milhões de toneladas - estão nos oceanos. Em comparação, é o mesmo peso de 10 mil baleias-azuis.

Com dados como esses em mente, um jovem holandês, Boyan Slat, resolveu criar uma empresa com a ambição não menor do que “limpar 90% do lixo do oceano”. Nasceu assim a The Ocean Cleanup. Com uso de câmeras a bordo de navios voluntários, a empresa desenvolveu um sistema baseado em IA para identificar locais de acúmulo de lixo plástico e o comportamento das correntes marítimas.

Dois anos depois, em março de 2020, a multinacional SAS Analytics lançou um projeto de monitoramento do desmate na Amazônia com o uso de IA impulsionado pelo público (crowd driven AI, em inglês). “Permitimos que a multidão treinasse o modelo de IA por dois anos. Resultado: conseguimos que a multidão fosse cerca de 90% precisa quando comparada com especialistas, e o modelo de IA foi 97% preciso se comparado com a multidão”, diz ao Estadão I-Sah Hsieh, gerente de inovação social da SAS.

O programa, em parceria com o Instituto Internacional de Análise de Sistemas Aplicados (IIASA), é resultado da iniciativa da empresa chamada Data for Good, que permite que os funcionários ofereçam suas habilidades analíticas para ajudar organizações na linha de frente de causas sociais e ambientais.

“Como a conservação ambiental é um dos principais interesses dos funcionários da SAS, encontramos organizações que estão na linha de frente e que combinam com as habilidades dos funcionários”, afirma Hsieh. Depois da Amazônia, a empresa levou o projeto para o arquipélago de Galápagos, no Equador, com o objetivo de monitorar tartarugas-marinhas em extinção.

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Digital das árvores

Em abril, o Google, de onde Hinton se demitiu, anunciou em Belém uma série de ações baseadas em IA. Entre elas, o combate à destruição da floresta, o comércio ilegal de madeira e o monitoramento de espécies. Em parceria com a The Nature Conservancy (TNC) no Brasil, a empresa anunciou o Digitais da Floresta, projeto que usa inteligência artificial e bioquímica para identificar e rastrear a origem da madeira comercializada a partir da Amazônia.

Extração ilegal é a porta de entrada para o desmatamento na Amazônia.  Foto: Alberto Cesar Araujo / Greenpeace

Cada árvore tem uma “impressão digital química” única. Essa “digital”, baseada na distribuição de isótopos estáveis de carbono, oxigênio e nitrogênio encontrados nelas, não pode ser alterada e é imune à falsificação. Os cientistas trabalham para desenvolver um modelo de rastreabilidade baseado na análise desses isótopos.

A ideia é criar uma plataforma de inteligência (aplicativo e web) que permita a autoridades e ao consumidor final identificar se um produto é feito com madeira de origem autorizada ou ilegal. A iniciativa conta com uma rede de parceiros, que inclui a Universidade de São Paulo (USP), o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e a Trase.

O investimento é de R$5,4 milhões e inclui a participação de 13 especialistas da empresa. Quando estiver pronto, o serviço deve ser oferecido gratuitamente a órgãos de comando e controle como o Ibama, diz Frineia Rezende, Diretora Executiva da TNC Brasil.

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Para isso, a entidade tem a ajuda de bancos de dados já existentes sobre a composição isotópica das árvores em reservas florestais da Amazônia e parte agora para novas coletas e classificações. “A meta é em dois anos e meio termos uma amplitude grande de amostras e, num segundo momento, ter um aplicativo”, afirma a Diretora Executiva da TNC Brasil.

Outro projeto é o monitoramento de espécies do Pantanal em parceria com a Associação Onçafari. Criada há onze anos, entre outras atividades, a entidade acompanha animais silvestres do bioma em um corredor verde de cerca de 400 mil hectares, quase três vezes o tamanho da Grande São Paulo.

Com 300 câmeras espalhadas pela região, acionadas durante trinta segundos sempre que um animal passa em frente a elas, a associação tinha dificuldades para fazer a análise dos vídeos. A solução veio com o emprego da inteligência artificial. Dessa forma, os pesquisadores conseguem acompanhar o comportamento e o desenvolvimento de espécies como onça-pintada, antas e tamanduás.

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“A iniciativa nasceu de três estudantes que visitaram o local e resolveram desenvolver um sistema baseado em IA para fazer a separação das imagens de acordo com a espécie filmada”, diz Mario Haberfeld, CEO e fundador da Onçafari. “Apresentei eles ao pessoal do Google e eles fizeram o sistema juntos.”

Entre as iniciativas da multinacional de tecnologia no Brasil estão também dois projetos com a colaboração com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Serviço Geológico do Brasil, órgãos do governo federal, para a detecção precoce de incêndios florestais (que liberam gás carbônico na atmosfera) e o desenvolvimento do Alerta de Inundações.

Menino passa por lixão para encher garrafa de plástico com água, em Mumbai, Índia. Foto: Arko Datta/Reuters
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O uso da tecnologia vai além das florestas e oceanos. Um projeto do Google testado em Israel foi levado para o Rio, em 2021, em parceria com a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). O estudo feito por um grupo de pesquisa de IA do Google, com semáforos inteligentes, mostrou que o tempo de veículos parados nos cruzamentos diminuiu. Isso resulta em menos emissão de poluentes: redução de até 20% de tempo parado e de queima de combustível.

Em Curitiba, projeto-piloto da Ciclefy Engenharia com o uso de IA foi testado para a coleta seletiva. Os técnicos da empresa desenvolveram um equipamento com capacidade de separar automaticamente o resíduo reciclável. A tecnologia usa câmera de reconhecimento que gira em torno do objeto depositado na lixeira. Este processo permite coletar imagens da embalagem. O sistema, então, identifica o tipo de resíduo e, por meio da automação, o separa por tipo.

Alertas necessários

O potencial da IA parece ser tão grande que, durante a COP-26, a Conferências do Clima da ONU, realizada na Escócia em 2021, pesquisadores de diferentes instituições dos Estados Unidos, Canadá e Europa entregaram às lideranças globais um relatório chamado Inteligência Artificial no Combate às Mudanças Climáticas, com recomendações para a tomada de decisões dos países.

Produzido pela Parceria Global em Inteligência Artificial (GPAI, na sigla em inglês) e Centro de IA e Clima (formado por pesquisadores e empresas e um centro de estudos dedicado à neutralização das emissões e à aplicação da AI de forma responsável), o documento faz recomendações de usos da tecnologia.

Entre eles, criar bancos de dados abertos e transparentes para melhorar o refinamento dos relatórios climáticos, e a inclusão de especialistas em AI nos grupos governamentais de análise de políticas contra as mudanças climáticas.

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Outro relatório, feito pela consultoria PwC e encomendado pela Microsoft, aponta que a IA tem potencial de preservar até 32 milhões de hectares de florestas e ajudar na redução de emissões de até 2,4 bilhões de toneladas de gás carbônico. Segundo o levantamento, o mercado de aplicações ambientais utilizando a tecnologia deverá valer até US$ 5,2 trilhões e poderá gerar mais de 38 milhões de empregos no mundo.

Mas nem tudo é tão bonito e verde. Estudo publicado pela revista científica Nature, em 2022, aponta as dificuldades em medir os resultados da IA no combate às mudanças climáticas. A pesquisa rastreou a relação entre a tecnologia e patentes em enorme escala: foram analisadas mais de 6 milhões delas nos Estados Unidos, de 1976 a 2019.

O resultado mostra que, dentro das patentes climáticas, a IA é mencionada com mais frequência em tecnologias de transporte, energia e produção industrial. Mais do que isso, revela que ela pode ter efeitos negativos para o meio ambiente quando é utilizada apenas para o “benefício do modelo de negócio”. Ou seja, quando não for usada tendo como objetivo mitigar danos.

O mesmo relatório da Parceria Global em Inteligência Artificial (GPAI) e e Centro de IA e Clima, por exemplo, chama atenção para os riscos que o mau uso da tecnologia pode ter para o aquecimento global. Em primeiro lugar, os efeitos associados à computação, como o enorme uso de energia elétrica necessária para os hardwares rodarem os programas de inteligência artificial.

A IA pode também ser usada para facilitar atividades associadas com altas emissões de gases estufa. A tecnologia, por exemplo, é amplamente usada na extração e produção de petróleo e gás. O estudo estima que isso contribua com US$ 425 bilhões em lucros à indústria de combustíveis fósseis até 2025.

Emissões resultantes da queima de combustíveis fósseis são a principal fonte de gases geradores do efeito estufa. Foto: Ajay Verma/Reuters

Outro efeito negativo: a IA é cada vez mais onipresente no mundo digital e nos sistemas de recomendação, resultando em publicidade altamente personalizada. O estudo alerta que “é plausível que isso aumente o consumo e a pegada de carbono dos consumidores.”

O mesmo resultado pode ser esperado para inovações ainda não consolidadas no mercado. Esses impactos são mais difíceis de quantificar, mas ainda assim significativos. A tecnologia de veículos autônomos, por exemplo, “pode introduzir ganhos de eficiência para dirigir, mas também reduz a barreira para dirigir e pode induzir nova demanda por transporte individualizado. Isso pode levar a maiores emissões totais associadas ao transporte”, diz o estudo.

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Nem boa, nem ruim e muito menos neutra

Semanas após a fala de Hinton, 350 executivos e cientistas de empresas e organizações assinaram um documento divulgado pelo Centro para a Segurança da IA, uma instituição sem fins lucrativos. O texto diz que o desenvolvimento acelerado da tecnologia representa perigo tão grave à humanidade quanto conflitos nucleares e doenças. Entre os signatários, além do próprio Hinton, Demis Hassabis, CEO do Google DeepMind, Sam Altman, CEO da OpenAI, criador do ChatGPT e Bill Gates, da Microsoft.

Para eles, a IA generativa, que consegue criar conteúdos originais como textos, músicas e imagens, como ChatGPT, já pode ser usada como ferramenta de desinformação. Em breve, isso pode ser um risco para empregos e depois, dizem, um risco à humanidade.

Após a startup de San Francisco OpenAI lançar nova versão do ChatGPT em março, mais de mil líderes e pesquisadores de tecnologia pediram, em carta aberta, moratória de seis meses no desenvolvimento de novos sistemas porque a IA traz “riscos profundos para a sociedade e a humanidade”.

Imagens de tartarugas marinhas usadas para treinar o sistema de reconhecimento dos animais Foto: Divulgação/SAS

Vivemos a primeira fase da IA, chamada de IA estreita ou fraca, dizem os pesquisadores. Nela, os sistemas realizam só tarefas para as quais foram “treinados” a partir de enormes bancos de dados. Tecnologias de “machine learning”, “deep learning” e processamento de linguagem natural aprimoram os sistemas, ainda assim limitados.

A segunda fase prevista é a da IA geral, ou forte. Nesse ponto, em desenvolvimento, a máquina poderá resolver problemas para os quais não foi programada e em pouco tempo superar a capacidade humana.

A terceira, e última fase, que assusta os pesquisadores, é a Super IA. Teórica, mas cada vez mais possível, essa etapa traria sistemas que superam o humano e são capazes de desempenhar qualquer função, resolver qualquer problema, ter criatividade e habilidades sociais. Há previsões que isso aconteça em menos de uma década, com resultados imprevisíveis.

A encruzilhada da IA remete à posição de especialistas como o filósofo e sociólogo francês Pierre Lévy, pesquisador das tecnologias da inteligência, e de Melvin Kranzberg, que foi professor de História da Tecnologia no Instituto de Tecnologia da Geórgia (EUA). Para ele, não se tratava de pensar na tecnologia como boa ou ruim, ou mesmo neutra, mas tudo ao mesmo tempo. Vale para a perda de empregos; vale para a guerra contra o aquecimento global.

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