Operações do governo Bolsonaro em terra Yanomami foram feitas para não funcionar, dizem procuradores

De acordo com os representantes do Ministério Público Federal em Roraima, União chegou a admitir que garimpo era impossível de ser combatido; ações foram feitas em ciclos de 5 a 10 dias e com vazamento de informações aos mineradores ilegais

PUBLICIDADE

Por Emilio Sant'Anna
Atualização:

As operações coordenadas do governo federal durante a gestão de Jair Bolsonaro foram feitas para não funcionar, diz o procurador da República em Roraima Alisson Marugal, que desde 2017 vem denunciando o prenúncio do que se tornou a crise humanitária e de saúde entre a população Yanomami, na Amazônia.

PUBLICIDADE

Ele diz que houve falta de empenho da Funai e de outros órgãos em combater uma situação que vinha se arrastando. “O governo fez operações para não funcionar, com ciclos de cinco a dez dias. Com de 400 pontos de garimpo, por exemplo, atuaram em apenas nove. Foram três ciclos com o mesmo resultado: nenhum resultado”, afirma. “Paralelamente assistimos a deterioração dos índices de saúde dos indígenas e a falta de governança do Ministério da Saúde.”

Desde sexta-feira, 20, o novo governo federal declarou emergência em saúde pública no território após identificar uma alta de casos de malária, desnutrição infantil e problemas de abastecimento. As imagens de indígenas magros e abatidos, entre eles várias crianças, chamaram a atenção nas redes sociais para a tragédia humanitária, reflexo de problemas de assistência e avanço do garimpo ilegal na região. O problema, no entanto, não começou agora.

No sábado, 21, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) prometeu que o governo federal vai trabalhar para “dar dignidade” aos indígenas e acabar com o garimpo ilegal, mas não detalhou os planos para combater a mineração irregular. Ele e ministros viajaram para Boa Vista por causa da crise sanitária.

“Desde 2017, o Ministério Público Federal, vem avisando o governo federal sobre o avanço do garimpo. Naquele ano foi ajuizada uma ação civil pública, pleiteando a colocação de três bases etnoambientais da Funai”, afirma Marugal.

Imagem de 2016 mostra indígena acompanhando agentes em operação de campo na terra Yanomami Foto: REUTERS/Bruno Kelly

As bases, ou Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), são unidades de campo de referência para os trabalhos de localização, monitoramento, vigilância e proteção de povos isolados e de recente contato na Amazônia brasileira.

Duas delas foram instaladas, mas a unidade no Rio Uraricoera, o maior do Estado, e uma das áreas de maior penetração de garimpeiros ficou de fora. “É um ponto de bastante fragilidade. Passados mais de cinco anos da sentença, a Funai ainda não cumpriu, apesar da multa de R$ 10 mil por dia”, diz o procurador.

Publicidade

Garimpo está crescendo desde 2017

Marugal e o também procurador da República Matheus de Andrade Bueno dizem que “gradativamente, o garimpo vem crescendo desde 2017, atingindo seu pico em 2021 e 2022″.

Na época, o MPF estimava 20 mil garimpeiros no Território Indígena em que vivem 30,4 mil Yanomami. A situação levou o órgão a acionar a Justiça Federal que ordenou a retirada dos garimpeiros do local.

Em 2021, após sucessivas denúncias de violência, o STF (Supremo Tribunal Federal) determinou a proteção dos povos Munduruku e Yanomami. A corte decidiu favoravelmente a pedido feito pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) pela retirada urgente de invasores.

Mais uma vez, no entanto, as ações do governo federal nem de longe resolviam o problema. A partir das falhas dos planos de combate anteriores, um plano de atuação do Ibama chegou a ser apresentado, mas nunca aplicado, diz o procurador.

PUBLICIDADE

“A linha de atuação do Ibama previa o combate nos rios e com o uso de aeronaves e poderia erradicar o garimpo em seis meses. Jamais foi aplicado. Muito pelo contrário, diversas vezes, o Ibama em Brasília impediu que o plano fosse aplicado”, afirma Marugal.

“No final de 2021, o governo federal se sentiu satisfeito com o resultado das operações e disse que o garimpo seria praticamente impossível de ser combatido”, diz o procurador, que afirma ter ciência do vazamento de informações das operações.

“Em 2022, as operações param e isso propiciou a invasão principalmente na região de Surucucu, de onde vem as crianças desnutridas.”

Publicidade

A ação do governo do Estado também influi no resultado das operações. Os representantes do MPF apontam decisões inconstitucionais do governador Antonio Denarium, como a que proibiu a destruição no local do maquinário de garimpo ilegal - o que acabou sendo revertido na Justiça.

“Embora fosse uma legislação dirigida aos órgãos estaduais, o recado foi claro: que a fiscalização do garimpo não seria tolerada”, diz Marugal.

Segundo o procurador, a atuação do Exército nas ações coordenadas de combate ao garimpo também foram limitadas e demora do Ministério da Defesa em autorizar o engajamento da força. “Houve resistência do Exercito e só participou dando suporte e cobrando da Polícia Federal os valores gastos”, afirma.

Ao Estadão, a a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, afirmou que caberá agora à Polícia Federal e ao Ibama, com o auxílio do Ministério da Defesa retirar os garimpeiros do Território Indígena Yanomami. “Essa atuação sobre a entrada dos garimpeiros é a Polícia Federal juntamente com o Ibama. O MMA (Ministério do Meio Ambiente) também está junto nessa articulação com o Ministério da Defesa para poder garantir a estrutura tanto para a retirada dos invasores quanto para manter uma base permanente lá de fiscalização para evitar a volta dos garimpeiros ao território”, disse a ministra.

Surpresa

Ambos os procuradores afirmam que a reação de espanto da sociedade brasileira causa espanto para eles que estiveram próximos ao problema nos últimos anos e denunciaram o descaso do governo federal.

Em Boa Vista desde 2021, o procurador Matheus de Andrade Bueno, responsável pela apuração dos crimes ambientais cometidos na região, afirma que as ações do MPF miram os financiadores dos garimpos ilegais, mas reconhece que uma das dificuldades em apontar os culpados é o grande número de suspeitos envolvidos.

Bueno diz que, além dos crimes ambientais, foi preciso também enfrentar o desvio de finalidade em decisões do governo federal. “A União queria alienar o minério apreendido e reverter o valor para a própria União. Para o MPF, isso era uma excrecência. Para quem tem a obrigação de combater e impedir o garimpo, não faz sentido lucrar com o próprio crime. Conseguimos reverter essa decisão e encaminhar os valores para o combate dos crimes ambientais”, afirma.

Publicidade

A presença dos mineradores ilegais tem sido uma constante desde a demarcação do território, em 1992, mas nos últimos quatro anos a irregularidade encontrou espaço para crescer ainda mais, com o enfraquecimento dos órgãos de apoio indígena e do combate aos crimes ambientais na gestão Jair Bolsonaro (PL).

Segundo dados da plataforma MapBiomas, de 2010 a 2020, a área ocupada pelo garimpo dentro de terras indígenas, no Brasil, cresceu 495%. As maiores áreas de garimpo em terras indígenas estão em território Kayapó (7.602 ha) e Munduruku (1.592 ha), no Pará, e Yanomami (414 ha), no Amazonas e Roraima.

Deterioração da saúde dos Yanomami

Marugal diz que ouve perguntas sobre como a situação dos Yanomami pôde chegar a esse ponto. Ele explica que a chegada do garimpo desestrutura a cultura, os hábitos e a saúde dos indígenas. O resultado são as taxas de mortalidade infantil e de desnutrição mais altas do que a dos países que lideram esse ranking.

Paralelamente ao caos social e ambiental, os procuradores viram avançar a deterioração dos índices de saúde, resultado da falta de governança do Ministério da Saúde. “Em 2020, o ministério cortou a alimentação indígena nos postos de saúde de maneira incompreensível. Muitos deixaram de procurar o serviço. Solicitamos o retorno e nos disseram que eles não fazem a segurança alimentar. Entramos na Justiça (e conseguimos reverter)”, diz Marugal.

Além da ameaça das atividades irregulares, a gestão da saúde da área Yanomami foi alvo de suspeitas de desvio no uso de verba para compra de remédios, conforme mostrou o Estadão nesta segunda-feira, 23.

A suspeita apontada pelo Ministério Público Federal (MPF) era de que só 30% de mais de 90 tipos de medicamentos fornecidos por uma das empresas contratadas pelo distrito sanitário indígena local (DSEI-Y) teriam sido devidamente entregues. O Estadão não conseguiu contato com o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga para comentar as denúncias.

De acordo com os procuradores, o montante dos desvios pequeno ante outros crimes do tipo, cerca de R$3 milhões, mas os efeitos foram devastadores.

Publicidade

O desvio de medicamentos vermífugos, por exemplo, impossibilitou que 10 mil crianças, das cerca de 13 mil previstas, não recebessem o tratamento. Para eles, o que propiciou essa situação foi a sustentação política de parlamentares do Estado, em Brasília. “É uma organização criminosa que foi debelada em um primeiro momento, mas as investigações vão se aprofundar para descobrir quem se locupletou desse desvio”, diz Marugal.

Em mensagem na rede Telegram, Bolsonaro chamou a crise na saúde Yanomami de “farsa da esquerda” e disse que a saúde indígena foi uma das prioridades do seu governo, destacando a atuação na pandemia. Nos últimos quatro anos, o ex-presidente defendeu a flexibilização do garimpo em áreas indígenas. O Ministério da Justiça, da gestão Lula (PT), disse que a Polícia Federal vai investigar a atuação do governo Bolsonaro no caso Yanomami.

Procurados, o Estado de Roraima e o Ministério da Defesa não se manifestaram até a publicação desta reportagem.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.