O presidente de Portugal, a Bienal do Livro e o voo centenário

Em 1922, Portugal fez a 1ª travessia aérea do Atlântico Sul. Repetimos a rota 100 anos depois, com Marcelo Rebelo no avião, a caminho do evento literário

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Foto do author Nathalia Molina

Gago Coutinho fica atrás da casa da minha mãe no Rio. Sacadura Cabral conheci numa voltinha no entorno do Museu do Amanhã, na Praça Mauá, no centro carioca. Em São Paulo descobri que a dupla está bem próxima entre si e perto de mim, na região da Lapa. O que eu não sabia era a história por trás dos nomes. Esses portugueses, que batizam ruas nas duas cidades, foram pioneiros da aviação mundial.

Saíram de Lisboa em direção ao Rio, durante a celebração do centenário da Independência do Brasil. Depois de mais de 60 horas de voo, 4.527 milhas percorridas e oito escalas, cumpriram a primeira travessia aérea do Atlântico Sul. O pioneirismo estava não apenas em completar o trajeto inédito, mas em inovar com o uso de um sextante adaptado a um horizonte artificial.

Todos os passageiros do voo centenário receberam um vinho do Porto com embalagem comemorativa Foto: Nathalia Molina @ComoViaja

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“Eles inventaram uma nova forma de navegação e decidiram fazer algumas paradas. Era bem complicado. Então é inspirador ver a paixão, o comprometimento e a coragem deles”, disse a CEO da TAP Airlines, Christine Ourmières-Widener, em entrevista pouco antes do pouso no Rio. Entre as classes executiva e econômica, a rodinha de jornalistas brasileiros à sua volta se posicionava ao lado de uma galley, aquele espaço que serve de cozinha no avião.

Agora, 100 anos depois, refizemos a rota num voo comemorativo a bordo de um A330neo, chamado de Santa Cruz, como o hidroavião de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Ao lado do nome no bico da aeronave da companhia portuguesa, foi pintada a Cruz de Cristo. Em homenagem ao feito português, o avião continuará assim ao longo do ano de 2022.

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Sacadura Cabral levou três anos se preparando para a travessia, sugerida por ele em 1919. Já eu, graças a sucessivas inovações na aviação desde então, pude passar três dias conhecendo o Algarve para escrever futuramente sobre a região portuguesa, antes de voltar para o aeroporto de Lisboa e embarcar no voo comemorativo, com o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, a bordo.

O presidente de Portugal

Aos passageiros, que aguardavam no portão de embarque sem nada entender sobre a atípica movimentação, o presidente de Portugal se dirigiu durante seu discurso. “É um momento histórico, e a TAP decidiu assinalar esse momento histórico. Por acaso, é o seu voo”, explicou Rebelo, sugerindo que os presentes poderiam contar no futuro que viajaram na data comemorativa.

Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo, cercado por repórteres antes de embarcar no voo centenário Foto: Nathalia Molina @ComoViaja

O que todos, principalmente os jornalistas, queriam saber era sobre o desconvite de Jair Bolsonaro para Rebelo almoçar com ele em Brasília. Depois de saber que o presidente português iria se encontrar com Luiz Inácio Lula da Silva, o brasileiro resolveu cancelar o encontro entre os governantes.

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“A relação verdadeiramente importante é entre povos. Eles têm um poder enorme e são mais duradouros. Aqueles que servem os povos têm uma função muito importante, mas os povos perduram para além dos bons e maus”, declarou. “Quem iria dizer que teríamos novas imigrações portuguesas para o Brasil, muito qualificadas, no fim do século 20? E agora imigrações transversais, de todas as classes sociais, do Brasil para Portugal?”, questionou, lembrando que, em menos de dez anos, entre 220 e 230 mil brasileiros foram viver no país europeu.

Todos os passageiros do voo centenário receberam um vinho do Porto com embalagem comemorativa Foto: Nathalia Molina @ComoViaja

O sotaque a bordo do novo Santa Cruz era de fato do português do Brasil, como no voo da minha ida. Em todos os assentos do avião, esperavam os passageiros um tablóide do jornal Diário de Notícias e uma garrafa de vinho do Porto Adriano Ramos Pinto. Levada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, a bebida não terminou intacta a travessia, já que a dupla sofreu naufrágios e ficou à deriva ao longo do percurso. No entanto, o exemplar de Os Lusíadas, de Luís de Camões, foi salvo e chegou ao Rio de Janeiro, rumo ao Real Gabinete de Leitura (situado na rua a que o poeta português dá nome, aliás).

A Bienal do Livro

Ponte literária que se mantém e transcende o idioma em comum. Quem esteve na Bienal do Livro de São Paulo viu o amplo estande de Portugal, país homenageado nesta 26ª edição – motivo pelo qual o evento era o destino do presidente português no Brasil, depois do voo centenário.

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Exposição na Bienal do Livro no estande de Portugal, país homenageado na edição deste ano Foto: Nathalia Molina @ComoViaja

Ao lado da sala para encontros com público e da livraria dedicada a autores de língua portuguesa, estava a exposição SketchTour Portugal Reload. Cada uma das grandes malas de viagem abertas apresentava, no seu interior, uma região diferente do país.

Os desenhos e textos expostos estão no livro lançado no evento, resultado de um projeto apoiado pelo Visit Portugal. A publicação conta com a participação de 20 sketchers portugueses e estrangeiros, que retrataram experiências turísticas em Portugal, e 11 escritores renomados da língua portuguesa, que descreveram o país, sua cultura e paisagens.

Livro lançado na Bienal reúne desenhos e textos sobre as diferentes regiões portuguesas Foto: Nathalia Molina @ComoViaja

Fernando Pessoa, sentado diante do bondinho, esperava os visitantes para fotografias. Com meu Fernando, levei nosso Joaquim para dirigir o elétrico 28, a rota mais turística de Lisboa. O veículo amarelo, sucesso em tantas feiras no Brasil, mora em algum endereço do Rio de Janeiro. Entre tantas correlações dessa história, só faltava ser na Gago Coutinho ou na Sacadura Cabral.

O voo centenário

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Apenas há um ano à frente da TAP, a francesa Christine me respondeu que já tinha ouvido falar dos dois portugueses, por ser uma “aviation geek”, como se definiu sorrindo. O voo comemorativo foi realizado em parceria com a Comissão Aeronaval para a Comemoração do Centenário da Travessia Aérea, a Força Aérea e a Marinha de Portugal. A CEO esteve antes num evento com descendentes da dupla. “É muito bonito ver que essas memórias continuam na família. Foi um feito e tanto.”

O feito dos dois portugueses marcou a aviação mundial, com um inovador sextante adaptado a um horizonte artificial Foto: Nathalia Molina @ComoViaja

O mesmo afirmou o piloto escalado para a celebração aérea, José Maria Sá Chaves. “Toda evolução tem um princípio, e eles alcançaram uma conquista histórica com as ferramentas que tinham. Houve uma evolução natural da aviação. Hoje em dia nós fazemos exatamente a mesma coisa, mas de uma forma diferente”, disse o profissional, que conhece várias cidades brasileiras e, mais especificamente, Rio de Janeiro e São Paulo. “O povo brasileiro é muito simpático. Tenho vários amigos, inclusive um deles é neto do Tom Jobim, o Daniel.”

Hora de apertar o cinto, íamos chegar. A água brilhando, a pista chegando. Fomos nós. Pousar. E desembarcar no Galeão ao som de Tom Jobim.