'Terrenal' celebra a convivência entre os opostos

Grandes interpretações ampliam os sentidos da peça do argentino Mauricio Kartun

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Por Maria Eugenia de Menezes
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A disputa sanguinária entre dois irmãos como metáfora para o mundo. No espetáculo Terrenal – Pequeno Mistério Ácrata, a parábola de Caim e Abel serve de inspiração para uma trama que mescla simplicidade a um agudo senso de percepção do humano. Escrita pelo argentino Mauricio Kartun e encenada no Brasil por Marco Antônio Rodrigues, a peça se apoia no argumento bíblico, amplamente conhecido, para conduzir a plateia a uma reflexão que remonta do passado mais remoto ao noticiário atual. 

Narrado no livro do Gênesis, o episódio de Caim e Abel trata daquele que seria o primeiro assassinato da história. Filhos de Adão e Eva, Caim tornou-se um agricultor e Abel, um pastor de ovelhas. Ao apropriar-se do argumento, o dramaturgo mostra dois irmãos que teriam sido abandonados por Deus em um terreno baldio. Deixados ali por 20 anos, eles trataram de encontrar usos distintos para a propriedade que receberam. Enquanto Abel vive de vender as larvas da terra para pescadores, Caim conseguiu criar uma rentável plantação de pimentões. Na esteira do negócio, ergueu também um muro para proteger a área e um sistema de pesos e medidas para mensurar as vendas e os lucros. 

O elenco. Inspiração do clown e de Samuel Beckett na história baseada em Caim e Abel Foto: LEEKYUNG KIM

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Para compor a oposição entre o nômade – que vive daquilo que a natureza lhe dá sem esforço – e o agricultor – aquele que cultiva a terra –, a peça se vale amplamente do humor, buscando uma estética circense. No palco semelhante a um picadeiro, os personagens surgem como palhaços. A direção usa a dicotomia clássica existente entre os clowns para a caracterização. Cerebral e autoritário, Caim é nitidamente o clown branco. Como manda a tradição, aqui ele tem o rosto pintado, usa um terno bem ajustado e gravata borboleta. Já Abel se aproxima da imagem do clown augusto – é bobo, parece estar sempre à mercê do outro, mas vence o ardil com a sua boa-fé. 

Dois personagens esperam por um terceiro que parece nunca chegar. A encenação também aproveita a deixa para evocar a obra-prima de Samuel Beckett e traz para o centro da cena a árvore que o autor irlandês descreve como elemento central do cenário de Esperando Godot. A relação pretendida pelo diretor faz todo o sentido, já que sabemos que o circo – e em particular a figura do palhaço – tem especial lugar na obra de Beckett. 

As associações entre a situação apresentada e a era de intolerância em curso no País são ainda mais felizes porque escapam do sentido didático. Primeiro, pelo humor próprio ao texto. Depois, e sobretudo, pela graça e sagacidade de seus intérpretes. O jogo de cena entre Danilo Grangheia, no papel de Abel, e Dagoberto Feliz, como Caim, delicia o público. O humor dos diálogos resvala ainda em um bem cuidado trabalho físico, a cargo de Esio Magalhães. O deboche não impregna apenas as palavras, está no corpo e nos gestos dos atores. 

A parábola é uma narrativa de sentido claro e único. No teatro, contudo, essa forma pode ser apropriada sem que se busque tirar dela uma lição. Em sua dramaturgia, Kartun consegue estabelecer um criativo paralelo entre o episódio bíblico e a situação atual. O expediente é de tal forma bem-sucedido que pode inclusive dar ao espectador a impressão de que uma segunda camada de atualizações foi feita, como se alguns diálogos tivessem sido reconstituídos para dar conta da polarização vivida no Brasil. Não foi o caso. A montagem segue bastante fiel ao original: no texto, já estava prevista, por exemplo, uma ode do personagem Caim ao porte de armas, apregoando o uso de revólveres como meio de se alcançar a paz e a segurança.

O retorno de Deus após anos de ausência traz uma bem-vinda dose de complexidade ao enredo. O personagem de Celso Frateschi é um pai permissivo e leviano, ocupado demais para se preocupar com justiça. Amante do prazer e da festa, remete imediatamente a Dionísio, deus do vinho e do teatro. Mas também não nega a inspiração cristã ao reforçar o aspecto do livre-arbítrio. Deus não impediu o assassinato de Abel assim como não eliminou a maldade do mundo. Terrenal nos convida a conviver com o diferente, não a exterminá-lo. Suas figuras – o capitalista de um lado, o sonhador do outro – são tão contraditórias quanto complementares. 

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TERRENAL. Centro Cultural São Paulo. Sala Jardel Filho. Rua Vergueiro, 1000. Tel.: 3397-4002. 6ª e sáb., 21h. Dom., 20h. R$ 20. Até 24/2

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