Negociação é cuidadosa e exaustiva

Nas salas fechadas de negociação da Rio+20, diplomatas defendem posições firmes

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Por Redação
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RIO - O contraste entre o calor carioca e o frio do ar-condicionado dentro do Pavilhão 3 do Riocentro reflete bem o que se passa nas salas fechadas de negociação da Rio+20. Debates acalorados são travados por meio de declarações frias e calculadas, em que diplomatas medem cuidadosamente cada palavra que sai de suas bocas. Por mais tensa que seja a negociação, ninguém perde a compostura, ninguém se exalta. Não há bate-boca - pelo menos "publicamente", com o microfone ligado. Quando muito, algumas palavras mais duras e uma linguagem corporal mais incisiva - sinais que, na linguagem diplomática, equivalem a uma bofetada com luva de pelica.É num cenário assim, dentro de salas quadradas e sem decoração, desprovidas de glamour, montadas dentro de um pavilhão árido e mal iluminado, que o futuro da Rio+20 - conferência cujo objetivo é definir o futuro do planeta - vem sendo negociado linha por linha, parágrafo por parágrafo, há cinco dias. É preciso paciência e cabeça fria para acompanhar os debates sem deixar transparecer a angústia e a irritação que os negociadores, por conta da etiqueta diplomática, são coibidos de demonstrar. Tudo procede lenta e metodicamente, apesar da urgência.Os negociadores se sentam ao redor de uma grande mesa quadrada, cada um com um microfone à sua frente. Atrás deles se sentam auxiliares e observadores credenciados, que por vezes levam e trazem mensagens do "mundo exterior". O acesso à sala é restrito, para proteger o sigilo das negociações e evitar constrangimentos aos países. Não há assentos marcados nem plaquinhas com nomes; todo mundo ali já se conhece de muitas e muitas negociações passadas.Ninguém jamais fala ao microfone sem antes lhe ser concedida a palavra. As negociações são divididas por temas e organizadas por um coordenador ("chair", em inglês), incumbido também de atuar como facilitador e conciliador. O objeto de negociação é o texto do documento que descreverá os resultados da conferência, batizado (após negociação) como "O Futuro que Queremos". O sucesso ou o fracasso da Rio+20 dependerá do que estiver escrito nesse documento ao final da conferência.Compromisso. O texto trata de temas ambientais, sociais e econômicos considerados essenciais para o desenvolvimento sustentável do planeta, como água, biodiversidade, florestas, oceanos, mudanças climáticas, energias renováveis, pobreza, segurança alimentar, saúde, educação, direitos das mulheres, empregos, padrões de consumo, sistemas financeiros, comércio internacional e outros. Cada parágrafo descreve um tipo de compromisso que deverá ser assumido pelos países signatários. Alguns relacionados a princípios gerais, outros a metas e ações específicas.O "problema", do ponto de vista diplomático, é que todos os 193 países-membros da ONU têm de concordar com cada vírgula que estiver escrita no documento. Expressões que soam como sinônimos para a maioria, como "nos comprometemos a", "nos esforçaremos para" ou "adotaremos medidas para" têm pesos diferentes na linguagem diplomática e são negociadas exaustivamente em alguns parágrafos, dependendo do que estiver escrito depois delas.A primeira versão do documento, chamada rascunho zero, em janeiro, tinha 19 páginas. Ao longo do primeiro semestre, o documento cresceu para 278, foi reduzido novamente e chegou ao Rio com 80 páginas, contendo mais de 300 parágrafos.O "efeito sanfona" se deve à introdução de centenas de modificações e sugestões apresentadas por diversos países, identificadas no texto por meio de colchetes. As negociações consistem em editar cada um desses colchetes - aceitando, rejeitando ou modificando o texto que aparece dentro deles - até chegar a um texto consensual "limpo", sem colchetes, que possa ser apresentado aos chefes de Estado na etapa final da conferência, do dia 20 ao 22.Alguns colchetes contêm só uma palavra, como no segundo parágrafo do documento, em que os Estados Unidos inseriram a palavra "extrema" no final da frase que diz que os países se comprometem a "livrar a humanidade da fome e da pobreza". O G-77+China (que representa mais de 130 países em desenvolvimento, incluindo o Brasil) pediu a deleção do termo. Outros colchetes contêm parágrafos inteiros, como aquele em que o G-77 propõe a criação de um fundo de apoio ao desenvolvimento sustentável, no valor de US$ 30 bilhões por ano - um dos pontos mais polêmicos da negociação, rejeitado pelos países ricos."Precisamos desenvolver uma estrutura de mobilização de recursos para garantir que as decisões que tomarmos aqui possam ser implementadas de fato", argumentava, em estilo irredutível, o negociador do G-77, o paquistanês Farrukh Khan. Em momentos críticos, as negociações se resumiam a uma batalha de pequenos discursos entre ele, representando os países em desenvolvimento do Hemisfério Sul, e representantes individuais de países desenvolvidos do Hemisfério Norte. Os diplomatas variam de acordo com o tema que está sendo discutido, mas Khan raramente saía da mesa.Debate. "Por favor, senhores, já estamos discutindo isso há meses. Temos pouco tempo para chegar a um resultado e não estamos fazendo nenhum progresso", dizia Khan, na quinta-feira, nas negociações sobre saneamento básico. Duas cadeiras à sua esquerda, um experiente diplomata brasileiro ouvia atentamente o debate, sem se pronunciar. Todos à mesa já conhecem as posições uns dos outros. As declarações ao microfone funcionam mais como uma queda de braço em "praça pública", em que os diplomatas oficializam verbalmente posições previamente negociadas e acordadas por suas respectivas delegações. Ao fazer isso, obrigam as outras partes a se posicionar oficialmente também.Em meio a tudo isso, o "facilitador" chama a atenção para pontos conflitantes, sugere soluções e pede flexibilidade aos negociadores. Um secretário edita o texto que está sendo negociado em tempo real, à medida que as alterações e questionamentos vão sendo apresentados. As modificações são projetadas numa tela, para que todos na sala possam visualizá-las.Apesar de todos os 193 países da ONU estarem implicados nos acordos, apenas alguns mais influentes costumam participar diretamente das negociações. Muitos países pobres da África e da Ásia não têm corpo diplomático (nem peso político) suficiente para isso. As mesas fechadas dificilmente têm mais do que 20 ou 30 diplomatas - lembrando que alguns deles representam blocos de vários países, como o G-77 ou a União Europeia (UE).Uma leitura cuidadosa dos textos "colchetados" deixa transparecer vários dos conflitos entre pobres e ricos que dificultam o consenso. Por exemplo, nas várias tentativas do G-77 de inserir referências ao princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, e dos países desenvolvidos de retirá-las. Ou nas tentativas do Vaticano de retirar referências do texto ao direito reprodutivo das mulheres.

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