Trechos de 'Tudo o que Tenho Levo Comigo' e 'A Pianista'

Trecho de Tudo o que Tenho Levo Comigo, de Herta Müller (Companhia das Letras, tradução de Carola Saavedra)

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Por Redação
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"Depois dos cinco anos no campo de trabalho eu vagava dia após dia pelo tumulto das ruas, ensaiando mentalmente as melhores frases para o caso de ser preso: PRESO EM FLAGRANTE - pensei em mais de mil desculpas e álibis para essa acusação. Levo comigo uma bagagem silenciosa. Fechei-me tão profundamente e por tanto tempo no silêncio que nunca consigo abrir-me através das palavras. Apenas me fecho de outras formas quando falo. No último verão de rendez-vous, para prolongar o caminho de volta do Erlenpark até em casa, entrei por acaso na igreja da Santíssima Trindade da Grosser Ring. Esse acaso atuou como destino. Eu vi os tempos que estavam por vir. Ao lado do altar lateral, numa coluna, estava o santo com seu manto cinza, e levava à guisa de gola um cordeiro na nuca. Esse cordeiro na nuca é o silêncio. Há coisas sobre as quais não falamos. Mas eu sei do que estou falando quando digo, o silêncio na nuca é diferente do silêncio na boca. Antes, durante e depois do meu tempo no campo de trabalho, durante vinte e cinco anos vivi com medo, do Estado e da família. Da dupla queda: que o Estado me encarcerasse como um criminoso e que a família me repudiasse como uma desonra. No meio da multidão nas ruas, me vi no reflexo das vitrines, das janelas dos bondes e das casas, nos chafarizes e poças, pensando incrédulo que talvez eu fosse mesmo transparente.Meu pai era professor de desenho. E eu, com as termas Netuno na cabeça, me encolhia como se me tivessem dado um chute quando ele usava a palavra AQUARELA. A palavra sabia o quão longe eu havia ido. Minha mãe dizia à mesa: Não parta a batata com o garfo, ela vai se desfazer; use a colher, o garfo se usa para a carne. Minhas têmporas latejavam. Por que ela fala de carne se se trata de batata e um garfo. De que carne ela está falando. Os rendez-vous me haviam virado a carne do avesso. Eu era o meu próprio ladrão, as palavras caíam inesperadamente e me atingiam."Trecho de A Pianista, de Elfriede Jelinek (Tordesilhas, tradução de Luis Krausz)"Erika recebe uma cabine de luxo, destinada pessoalmente a ela. Não precisa esperar, a senhora Erika. Em compensação, os outros têm que esperar mais. O dinheiro está ao alcance de sua mão, a postos, assim como a mão esquerda ao tocar o violino. De vez em quando, durante o dia, ela calcula quantas vezes poderá espirar com a moeda de dez que economizou. Ela poupa esse dinheiro economizando na hora de seu lanche. Agora um holofote azul atinge um pedaço de carne. Eles até usam cores ali! Erika ergue do chão um pedaço de papel higiênico encharcado de esperma e o coloca diante do nariz. Inspira profundamente aquilo que um outro produziu por meio de trabalho duro. Ela respira, olha e despende um pouco de vida ao fazê-lo.Há também clubes onde é permitido fotografar. Nesses, cada um escolhe à vontade o seu modelo. Mas Erika não quer entrar em negociações. Ela só que olhar. Vai ficar sentada ali, quietinha, e olhar. Olhar. Erika olha sem tocar. Não tem oportunidade nem sensibilidade para acariciar-se. A mãe dorme na cama ao lado e presta atenção nas mãos de Erika. Essas mãos devem tocar piano e não se esgueirar por debaixo do cobertor como formigas e dirigir-se para o pote de geleia. Também quando Erika se corta ou se espeta, ela quase não sente nada. É só a visão que nela atingiu seu pleno florescimento.A cabine fede a desinfetante. As faxineiras também são mulheres mas elas não têm essa aparência. Costumam arrastar, indiferentes, o esperma derramado desses caçadores para um balde triangular. E outra vez encontram, jogado no chão, um pedaço de papel higiênico amassado, duro como cimento. (...) Uma mulher de cabelo preto faz uma pose criativa, por meio da qual é possível aos espectadores contemplar seu interior. Ela está girando em círculo sobre uma espécie de torno. Mas quem está girando o torno? Primeiro ela fecha as pernas e ninguém consegue ver nada. Mas o líquido espesso da antecipação saliva nas bocas."

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